Por que devemos conhecer, reconhecer e aprender com Beatriz Nascimento
Por Patrícia da Veiga – Fonte: www.ufrj.br
Na segunda reportagem da série Mulheres em Conexão, prestamos homenagem a uma intelectual inspiradora que passou pela UFRJ em dois momentos de sua vida – na década de 1970, quando cursou História, e na década de 1990, no mestrado em Comunicação e Cultura. Mulher, negra, sergipana, mãe, historiadora, poeta, ativista: Maria Beatriz Nascimento foi impulsionadora de debates no movimento negro e contribuiu de forma singular para o pensamento social brasileiro. Beatriz vive nas recordações, nos gestos, nos estudos e nas reflexões de muita gente. Mas ainda precisa ter sua memória reparada; sua luta e seus textos, difundidos.
Prenhe de luz Plenilúnio Altiva força benfazeja Um certeiro retornar Ambiciosa e divina Maliciosa (e) impulsiva Incandescente (e) intempestiva Serenidade anuncia A quem te dirige o olhar Luna, Beatriz Nascimento, 1986
Maria Beatriz nasceu em 12 de julho de 1942, em Aracaju (SE). Foi a oitava filha – entre dez – da dona de casa Rubina Pereira do Nascimento e do pedreiro Francisco Xavier do Nascimento. No final de 1949, aos 7 anos, mudou-se com a família para a então capital do país. O período foi marcado por um forte fluxo migratório rumo ao Sudeste e seus pais, como milhares de pessoas, foram embalados pelo sonho do desenvolvimento. Os Nascimento partiram de Salvador (BA) e se instalaram em Cordovil, bairro da zona norte do Rio de Janeiro.
Em 1968, aos quase 26 anos, Beatriz matriculou-se na UFRJ, como discente do curso de História. Ao frequentar o Largo de São Francisco, de imediato sentiu um incômodo com a postura acadêmica vigente. No documentário Ôrí (1989), dirigido pela socióloga e cineasta Raquel Gerber, ela comenta: “Quando cheguei à universidade, a coisa que mais me chocava era o eterno estudo sobre o escravo. Como se nós só tivéssemos existido dentro da nação como mão de obra escrava, como mão de obra para a fazenda e para a mineração”. Formou-se em 1971, aos 29 anos, tendo na bagagem um estágio de pesquisa no Arquivo Nacional, sob a orientação do historiador José Honório Rodrigues.
Em meados dos anos 1970, Beatriz conheceu Eduardo Oliveira e Oliveira, Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, entre outros acadêmicos e militantes negros, com quem seguiu por uma jornada dupla, na pesquisa e no ativismo, perfeitamente conciliável na visão do coletivo ao qual ela pertenceu e foi porta-voz. Em 1975, a historiadora contribuiu para a formação de vários grupos de estudo no Rio de Janeiro, com o objetivo de ampliar e aprofundar a produção de conhecimento sobre as relações étnico-raciais no Brasil. Um deles foi o Grupo de Trabalho André Rebouças (GTAR), da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde a historiadora atuou como professora e orientadora.
“Eu apresentaria minha mãe como uma mulher que estava muito à frente do seu tempo. Em vários campos da jornada do negro na diáspora, no continente africano, no campo espiritual, na formação deste no seu espaço geográfico e no seu trabalho. Uma pessoa que resgatou o quilombo já dentro de sua família e daí partiu para o mundo”, situou Bethânia Gomes, professora e primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, filha e curadora da obra de Beatriz, a pedido de nossa reportagem.
De 1974 a 1977, entre os corredores das universidades e os bailes black do subúrbio, o movimento negro do Rio de Janeiro se consolidou usando como referência teórica dois textos de Beatriz: “Por uma história do homem negro” [Revista de Cultura Vozes, 68 (1)] e “Negro e racismo” [Revista de Cultura Vozes, 68 (7)]. Esses trabalhos reivindicavam, primeiro, uma historiografia da população afro-brasileira; segundo, o reconhecimento de que há várias formas de ser negro na sociedade; terceiro, o entendimento de que a cultura negra é base da cultura brasileira.
Em 1977, quando a Universidade de São Paulo (USP) realizou a Quinzena do Negro, emblemática para a história do movimento, Beatriz participou como conferencista. A essa altura, ela já era uma intelectual com projeção nacional, antecipadora de questões e posicionamentos, influenciadora de sua geração.
“Lá estava ela, vestida de dourado, parecendo uma manifestação de Oxum em terra, audaciosa nas ideias, bela na imagem, altiva na interlocução. Um momento mágico de afirmação de uma mulher negra como sujeito do conhecimento sobre seu povo. Um momento mágico de sabedoria e sedução, de elegância e perspicácia, como se estivéssemos num ritual iorubá de culto ao poder feminino”, descreveu Sueli Carneiro no prefácio do livro Eu Sou Atlântica (São Paulo: Instituto Kuanza & Imprensa Oficial, 2006), de autoria de Alex Ratts, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Entre 1979 e 1981, em uma especialização na UFF, Beatriz desenvolveu a pesquisa “Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas”, projeto financiado pela Fundação Ford e pela Casa Leopold Senghor, do Senegal. Nesse período, ela fez pesquisa de campo em Angola e no interior de Minas Gerais. Em 1982, publicou na Revista Estudos Afro-Asiáticos o relato desse estudo de caso, intitulado “Kilombo e memória comunitária”. “Este projeto é também um grande sonho”, escreveu.
Questionadora das limitações disciplinares, sua produção foi além do campo da História. Ela desenvolveu reflexões sobre cinema, literatura, representação e identidade. Falou sobre a condição inferiorizada da mulher negra no mercado de trabalho, em razão da herança escravista. Criticou a perpetuação, no imaginário social, da mulher negra sensualizada e como isso reverberava em obras aclamadas pelo público, como Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues. Denunciou as filigranas do racismo nas relações afetivas.
Beatriz se expôs, fez poesia, transformou suas questões pessoais e sua saúde mental em novos escritos – que podem ser apreciados no livro Todas (as) Distâncias (Salvador: Ogum’s, 2015). Em 1987, recebeu o título de Mulher do Ano pelo Conselho Nacional de Mulheres no Brasil. “Minha mãe é uma das referências da história do Brasil não só no plano do passado, mas também no plano futuro. Para mim, ainda mais para o futuro”, afirmou Gomes.
No artigo “A trajetória intelectual ativista de Beatriz Nascimento”, publicado em 2005 na Revista Eparrei e reproduzido em 2009 no Portal Geledés, Alex Ratts acrescenta: “Há que se reconhecer que, como uma das protagonistas, ela palmilha, sedimenta e constrói em grande parte o espaço que hoje alcançamos nas questões étnico-raciais: a realização e ampliação dos estudos raciais por pesquisadoras(es) negras(os); a presença negra discente e docente nas universidades; a história da população negra brasileira e seus vínculos diversos e contraditórios com as sociedades africanas; a inter-relação entre temas como identidade, raça, sexo, corpo, cultura e espaço; a correlação, nem sempre afinada, entre pensamento e ativismo negros”.
Atlântica, transatlântica, em movimento
“A terra é circular, o sol é um disco. Onde está a dialética? No mar.” As palavras que Beatriz Nascimento declama no início do documentário Ôrí dão pistas de como a intelectual se enxergava e se posicionava na dinâmica do mundo: entre continentes, acompanhando o vaivém das ondas, segura de si, mas não sem conflitos e jamais sem perder de vista o firmamento.
“Aí eu chorei de amor pelos navegadores, meus pais. Chorei por tê-los odiado, chorei ainda por ter mágoa desta história. Mas chorei, fundamentalmente, diante da poesia do encontro do Tejo com o Atlântico. Da poesia da partida para a conquista. Eles o fizeram por medo também e, talvez, tenham chorado diante de todas as belezas além do mar atlântico. Ó paz infinita, poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América e novamente Europa e África. Angola. Jagas. E os povos de Benin, de onde veio minha mãe. Eu sou atlântica”, afirma, ainda no início do documentário.
Beatriz ousou questionar as interpretações sobre a formação social brasileira em um momento de censura ao pensamento e em um espaço acadêmico guiado por pressupostos europeus. “O que é a civilização africana e americana? É um grande transatlântico. Ela não é a civilização Atlântica. Ela é transatlântica. Foi transportada para a América um tipo de vida que era africano. A transmigração de uma cultura e de uma atitude no mundo de um continente para o outro. De África para América”, apresenta, em outro momento de Ôrí.
Ao usar termos como “transatlântico” e “transmigração”, ela reconheceu a função do deslocamento na definição das trajetórias negras no Brasil: de um continente a outro, de um território de cativeiro a um território de liberdade, do campo à cidade, do Nordeste ao Sudeste. Demarcando essa condição movente, a pensadora estabeleceu vínculos com a memória e delineou uma identidade coletiva que tem nos corpos sua maior evidência.
“Beatriz dizia que não poderia se identificar com a historiografia oficial. Ela percebia outro lado da questão. O lado da pessoa humana”, defendeu a diretora de Ôrí, Raquel Gerber, em janeiro de 2021, no evento virtual Beatriz Nascimento: Civilizações Transatlânticas, Continentes de Memória, organizado pelo grupo de pesquisa Formas de Habitar o Presente, da Escola de Belas-Artes (EBA), em parceria com a Escola de Comunicação (ECO). Na ocasião, ela foi convidada a falar junto com Muniz Sodré, emérito da Universidade, e Alex Ratts, figura central na retomada da obra da historiadora. “No espaço social brasileiro, que é também um espaço cultural, ela percebeu que era fundamental comunicar um novo tipo de valor. Um valor baseado na dignidade negra”, completou Sodré.
Um ponto de vida
Se hoje, nas Humanidades, estamos acostumados com perspectivas que empreendem a descolonização do pensamento, em grande medida devemos isso a Beatriz Nascimento e aos debates que o movimento negro travou entre as décadas de 1970 e 1980, dentro e fora da Academia. A noção de quilombo – para a sociedade científica da época, cristalizada na formação de Palmares – foi comentada, destrinchada e reformulada por essa geração, dando-nos novas pistas para compreender o Brasil.
A historiadora estudou o tema por quase 20 anos. Em 1977, no início dessa jornada, na Quinzena do Negro, na USP, Beatriz lançou algumas de suas hipóteses. “Então, nesse momento, a utilização do termo ‘quilombo’ passa a ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta, como se reconhecendo homens, como se reconhecendo pessoas que realmente devem lutar por melhores condições de vida, porque merecem essas melhores condições de vida na medida em que fazem parte dessa sociedade”, pronunciou.
É possível rever a gravação desse seminário em Ôrí. Logo após a fala de Beatriz, uma grande polêmica se instaura no auditório, pois uma parte da plateia não consegue conceber outra luta possível que não a luta de classes. E eis que Beatriz responde: “A questão econômica não é o grande drama. Apesar de ser um grande drama, não é o grande drama. O grande drama é o reconhecimento da pessoa, do homem negro, que nunca foi reconhecido no Brasil”.
Os esforços de Beatriz para responder à pergunta “o que é quilombo?”, bem como os resultados de suas reflexões, provaram que a questão é, também, política. Ela estava falando do primeiro projeto de nação que nasceu no Brasil. “O quilombo surge do fato histórico que é a fuga. É o ato primeiro de um homem que não reconhece que é propriedade de outro. Daí a importância da migração, a importância da busca do território”, apresenta, em Ôrí.
Beatriz descreveu a dimensão material e simbólica do quilombo, trouxe-o para a contemporaneidade, reconheceu-o no campo, nas favelas, nas manifestações da cultura popular. No documentário de Gerber, as imagens sugerem exemplos: o baile black, a escola de samba, os reinados da congada e do maracatu, os terreiros de candomblé, as comunidades rurais, as manifestações nas ruas, os encontros do movimento negro.
“O quilombo é memória que não acontece só para os negros, acontece para a nação. Ele aparece, ele surge nos momentos de crise da nacionalidade. A nós não nos cabe valorizar a História. A nós nos cabe ver o continuum dessa História. E Zumbi queria fazer a nação brasileira, já com índios e negros integrados dentro dela. Ele queria empreender um projeto nacional de uma forma traumática, mas não tão traumática quanto os ocidentais fizeram, destruindo culturas, destruindo a história dos povos dominados”, defende, no documentário.
Como numa dança, com fluidez, a intelectual deslizou seu olhar entre os espaços macro e micro, entre o quilombo e o corpo, o céu e a cabeça. E entendeu a terra como um dos elementos vinculantes desses planos, o que fez com que ela pudesse antecipar – como fez com outros temas – a questão socioambiental e as preocupações com o destino do planeta. “O pó da terra é o que a gente tem mais medo de perder”, salienta no filme.
“Mais do que um ponto de vista, ela tinha um ponto de vida, um ponto de existência. O quilombo estava no centro dessa existência. Ela se colocava nessa forma de existir. Ela vivia de uma forma quilombesca”, declarou Muniz Sodré, na homenagem feita a ela. Não à toa, o produto que traduz seu pensamento em imagens se chama Ôrí – em iorubá, cabeça. Está lá o “ponto de vida” de Beatriz e de muitas pessoas que pisaram na terra antes dela.
“Beatriz era uma mulher doce e ao mesmo tempo impetuosa por causa da sua missão de trazer uma revolução interna a cada afro-brasileiro e a cada brasileiro. Com a herança do cangaço, por ser nordestina, e da África, ela, com seu legado, honrou e honra a verdadeira história deste país”, defendeu Bethânia Gomes, em entrevista ao Conexão UFRJ.
Retomada e reparação
Para fazer Ôrí Gerber entrevistou Beatriz em momentos distintos, durante três anos. Elas se conheceram na década de 1970, por meio de Glauber Rocha, e se reconheceram na tarefa do Cinema Novo de indagar com imagens a nação brasileira, o ser brasileiro. Durante a homenagem que a ECO e a EBA fizeram para Beatriz Nascimento, Gerber comentou como foi difícil, e transformadora, a realização do filme. “Foi bom para a Beatriz e foi bom para mim porque pudemos exprimir nos gestos toda a grandiosidade e as contribuições da civilização africana”, observou.
O documentário foi concebido em um contexto marcado por rupturas globais nas configurações políticas, nas ciências, nas artes, nos modos de narrar e no pensamento social. Como produto de seu tempo, é uma metáfora para a iniciação em outro mundo, que não é necessariamente o espiritual, mas, certamente, um mundo descolonizado. “O filme é sobre a cabeça que teria miticamente Beatriz Nascimento, que hoje parece ser uma ancestral feminina”, definiu Sodré.
Um evento específico para falar sobre essa emblemática personagem e discutir sua contribuição para a sociedade ocorreu na UFRJ quase 26 anos depois de sua morte. A iniciativa partiu de um ex-aluno da UFG, egresso da ECO e, atualmente, professor da EBA. “Uma das coisas que mais me surpreendeu quando entrei na ECO, como doutorando, em 2012, foi o desconhecimento sobre Beatriz Nascimento, sua ausência nas bibliografias e nos espaços de memória da Escola”, revelou Vinícios Ribeiro.
Beatriz foi vítima de feminicídio em 28 de janeiro de 1995, quando levou cinco tiros pelas costas. O autor do crime foi um homem branco que violentava sua companheira, amiga da pesquisadora. Na ocasião de seu falecimento, a historiadora trabalhava como professora na rede estadual de ensino há 11 anos e há três ocupava novamente as salas da Universidade, como aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM), orientada por Sodré. “O que seria da intelectual Beatriz se não tivesse sua vida interrompida tão precocemente? Como nós seríamos influenciados se pudéssemos, ainda hoje, conviver com ela?”, lamentou Suzy dos Santos, diretora da ECO, durante a homenagem.
Incansável no diálogo com a pensadora, Alex Ratts reforçou a importância de reconhecer sua trajetória em vida: “Quando Beatriz chega ao mestrado, provavelmente nenhuma mulher negra tinha escrito tanto quanto ela”. Na ocasião do evento virtual, ele comentou sobre textos inéditos que vem recuperando, juntamente com Bethânia Gomes, e que podem se tornar outra coletânea, 15 anos depois da publicação de Eu Sou Atlântica. “Em carta para uma amiga, em um texto que está manuscrito, ela, de forma ousada, estava se propondo a estudar a afirmação étnica, o racial, na obra ficcional de Muniz Sodré – Bola da Vez, O Bicho que Chegou à Feira e Santugri”, exemplificou.
Ratts ressaltou a importância da retomada dos textos de Beatriz, assim como os de Abdias Nascimento, Lélia Gonzales, Milton Santos, entre outros pensadores cruciais para compreender o Brasil. Sua defesa é a de que, mais do que homenageados, esses intelectuais devem estar no ementário das disciplinas, pois contribuíram e seguem contribuindo com a sociedade. “Homenagens e compensações simbólicas são importantíssimas, mas no nosso universo acadêmico eu também defendo cotas epistêmicas e reparações epistêmicas. É importante fazer deslocamentos”, concluiu.
Em março, uma comissão formada por docentes da ECO e da EBA começou a preparar um processo para requerer o título de doutora honoris causa para Beatriz Nascimento. O pedido, depois de formulado, passará pelas instâncias deliberativas da UFRJ. Perguntamos a Bethania Gomes como ela via essa possibilidade. Sentindo-se agradecida, a filha de Beatriz disse entender a movimentação do corpo social da instituição como um ato de reparação. “Não só para a memória e existência de Beatriz Nascimento, mas também para a história e direitos civis do povo negro e afrodescendente. Beatriz contestou e manifestou parte da história do Brasil.”