Professores analisam os diferentes aspectos da ditadura militar e os seus desdobramentos hoje
Por Pedro Barreto – Fonte: www.ufrj.br
Com essas palavras, o senador Auro de Moura Andrade, que presidia sessão no Congresso Nacional, deu legitimidade institucional ao golpe de Estado, no dia 2 de abril de 1964. A alegação era de que o então presidente da República, João Goulart, não se encontrava no país. A informação fora desmentida pelo então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que comunicara que Jango se encontrava no Rio Grande do Sul. O golpe, no entanto, já estava dado, desde a madrugada de 31 de março para 1º de abril, quando o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, rumou com suas tropas para o Rio de Janeiro. Goulart, em Porto Alegre, fora aconselhado por Leonel Brizola, seu cunhado e então deputado federal pelo estado da Guanabara, a resistir. Temendo um derramamento de sangue, o presidente da República por direito não seguiu o conselho e se exilou no Uruguai. Começavam ali os primeiros dias dos 21 anos de autoritarismo, endividamento, corrupção, censura, torturas e mortes que se seguiriam.
Ainda que executada por generais do Exército brasileiro, a conspiração que resultou no golpe de Estado havia sido urdida em parceria com setores civis, como a imprensa, a igreja, políticos, empresários, e recebera apoio do governo estadunidense, na época comandado pelo democrata Lyndon B. Johnson. Incomodava-os sobremaneira a série de reformas de base iniciadas por Goulart − administrativa, fiscal, bancária e agrária − e anunciadas no emblemático comício da Central do Brasil, em 13 de março. A resposta veio menos de uma semana depois, no dia 19, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo. O movimento, que teria reunido cerca de 300 mil pessoas, era composto, basicamente, por pessoas das classes média e alta paulistana, representantes da igreja católica e políticos conservadores – entre eles, o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, e o senador Auro de Moura Andrade. A crise com os setores militares acentuou-se ainda mais no dia 30 de março, quando Jango discursou em defesa de lideranças da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, que haviam se amotinado em protesto contra punições impostas por oficiais da Marinha.
No momento em que recordamos os 57 anos do golpe – que alguns preferem chamar de “revolução” ou “movimento” –, ainda há reflexões importantes a fazer em relação àquele episódio, que até hoje não foi superado pela sociedade brasileira. Quais elementos propiciaram a ruptura democrática? Seria possível resistir a ela? De que forma se deu a transição para a redemocratização do país? Ainda hoje há riscos de uma nova quebra institucional? Para responder a essas perguntas, o Setor de Comunicação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) entrevistou professores e pesquisadores que se dedicam a refletir e investigar os diferentes e complexos aspectos que fazem parte dos estudos sobre aquele período.
Resistência possível?
Como primeira questão, indaga-se: seria possível resistir ao golpe? E se João Goulart tivesse considerado a recomendação de Leonel Brizola e enfrentasse os generais, políticos, eclesiásticos, empresários e o governo dos Estados Unidos, o que teria ocorrido? No documentário O Dia que Durou 21 Anos, de 2013, os diretores Camilo e Flávio Tavares exibem documentos que apontam a colaboração do governo daquele país, que teria oferecido o envio de uma frota de navios estadunidenses para debelar a resistência, caso ela ocorresse. Não foi preciso.
Para o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH), vinculado ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ, não havia condições políticas para a resistência. “As condições para fazê-lo não estavam necessariamente reunidas. Não é simples compor um bloco capaz de sustentar a legalidade. A questão é: como construir uma legalidade com realismo político e força? A derrota não ensina apenas que você se precipita por meios armados. Pelo contrário”, afirma o professor, que foi militante de grupos de resistência à ditadura, é integrante do Coletivo Fernando Santa Cruz e membro da direção do Comitê Brasileiro da Anistia (CBA) no Rio de Janeiro. O docente também é sobrinho do deputado Cunca Bocayuva, um dos parlamentares a protestar contra o pronunciamento de Auro de Moura Andrade, no Senado Federal, no dia 2 de abril de 1964. “Foi o golpe precursor na América do Sul, dentro do contexto de guerra fria. O objetivo foi barrar regimes de reforma social, como no Brasil, e processos transformadores considerados possíveis, que tinham como modelo a Revolução Cubana. Barrava a mobilização social popular, o populismo, as mobilizações de esquerda e as reformas de base”, analisa o professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ.
Mortos e desaparecidos
O número de mortos e desaparecidos nas mais de duas décadas de regime de exceção permanece impreciso até hoje. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado durante o governo da presidenta Dilma Rousseff – que atuou como militante na resistência à ditadura –, menciona 434 mortos e desaparecidos entre 1946 e 1988. O dado é algumas vezes inferior àqueles apresentados pelas comissões da verdade em outros países sul-americanos que também passaram por ditaduras militares. Na Argentina, organizações de defesa dos direitos humanos calculam em 30 mil os assassinatos cometidos pelo Estado. Grande parte dessas mortes foi cometida durante o governo do ditador Jorge Rafael Videla, entre os anos 1976 e 1981 (clique aqui para ler mais). No Chile, o ditador Augusto Pinochet assumiu o poder em 11 de setembro de 1973, após o bombardeio de aviões de fabricação estadunidense sobre o Palácio de la Moneda, onde se encontrava o presidente Salvador Allende – que teria cometido suicídio para não se entregar aos militares golpistas. A Comissão Valech, presidida pelo bispo Sergio Valech e criada para investigar os crimes cometidos durante o governo Pinochet, afirma terem sido cometidos mais de 40 mil assassinatos durante os 17 anos de governo ditatorial (1973-1990). Entretanto, associações de vítimas dizem que esse número pode superar os 100 mil.
Devido a essa discrepância entre os números oficiais de vítimas nos diferentes países, o jornal Folha de S. Paulo entendeu ser possível considerar o período em que o Brasil esteve governado por militares como uma “ditabranda”, em editorial publicado em 17 de fevereiro de 2009 . No entanto, os editorialistas, provável ou convenientemente, ignoram a subnotificação de registros de mortos e desaparecidos no país. Os números presentes no relatório da CNV não contemplam, por exemplo, as vítimas encontradas na chamada Vala de Perus, em São Paulo, de onde foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos, no dia 4 de setembro de 1990. Apenas cinco vítimas foram identificadas: Dênis Casemiro, ex-lavrador e pedreiro, ingressou em movimentos da luta armada, foi torturado na carceragem do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de São Paulo e fuzilado, aos 29 anos, no dia 18 de maio de 1971. Frederico Eduardo Mayr, estudante de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, foi morto, aos 23 anos, com três tiros no peito, após sessões de tortura no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo, no dia 24 de fevereiro de 1972. Flávio Carvalho Molina, graduado em Química pela UFRJ, foi morto em 7 de novembro de 1971, na sede do DOI-Codi de São Paulo, aos 34 anos. Dimas Antônio Casemiro, irmão mais novo de Dênis, foi torturado até a morte, no dia 7 de abril de 1971, aos 25 anos. Aluísio Palhano Pedreira Ferreira tinha 48 anos quando foi torturado e morto, em 21 de maio de 1971, no centro de tortura conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Não se sabe quantas das ossadas encontradas na Vala de Perus são de pessoas assassinadas pelo Estado brasileiro. O fato é que, após 31 anos de sua descoberta, essa ainda é uma história a ser revelada.
Em relação à repressão do Estado contra trabalhadores do campo, o livro Camponeses Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição é o resultado do projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lançado em 2013. A obra reúne casos de 1.196 camponeses mortos e desaparecidos, entre 1961 e 1988. Do total de mortes registradas, estima-se que 760 tenham ocorrido entre 1964 e 1985.
Quanto aos povos indígenas, o Texto 5 do relatório da CNV menciona que “foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O documento, porém, admite que “o número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”.
Papel da imprensa
Entre os agentes envolvidos na urdidura do golpe de 1964, a imprensa desempenhou papel fundamental na formação de uma base de apoio e na legitimação discursiva da ruptura democrática a partir de prosaicos argumentos como a “defesa da pátria e das famílias contra a iminente ameaça comunista”, entre outros. Marcio de Souza Castilho é professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (Iacs/UFF) e autor do livro Sob o Império do Arbítrio: Prêmio Esso, Imprensa e Ditadura (Alameda, 2019), que analisa a relação de jornalistas e empresas de comunicação com o regime militar. A obra é baseada na tese de doutorado de Castilho, defendida na Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, em 2010, e orientada pela professora Ana Paula Goulart. “Todos os grandes jornais apoiaram o golpe de 64, em uma grande articulação das forças armadas com a sociedade civil. Exceção feita ao jornal Última Hora, do Samuel Wainer, que sempre denunciou o golpe e sofreu uma série de represálias até o seu fechamento, em decorrência disso. O Correio da Manhã apoiou, mas foi o primeiro a debandar, nos primeiros dias após o golpe, percebendo as violências cometidas”, analisa o professor do Iacs/UFF. Castilho ressalta que a observação do contexto histórico é relevante para a análise. “Todos eles tinham uma perspectiva liberal e, portanto, alinhados a setores da sociedade civil que viam no governo Jango uma ameaça comunista, sindicalista etc., dentro de um ideário típico do contexto de guerra fria. Esses jornais não faziam críticas às violências da repressão estatal e classificavam como ‘terroristas’ os atos de resistência à ditadura”, completa.
Houve uma mudança, entretanto, a partir da decretação do Ato Institucional nº 5, no dia 13 de dezembro de 1968, que suprimiu garantias mínimas de direito e autorizou a censura à imprensa. Castilho compara aquele momento com o processo que ocorreu na França da década de 1940, após a ocupação nazista. Em ambos os casos, configurou-se o que o historiador Pierre Laborie – cujos conceitos foram trazidos para a historiografia brasileira pela professora Denise Rollemberg, da UFF – denominou de “zona cinzenta”, ou seja, onde os mesmos atores sociais que resistem também colaboram com o regime. “Com o AI-5, essa relação foi estremecida, porque o governo atingiu mais diretamente os jornais, através da censura prévia e também por meio de bilhetes e telefonemas para as redações, indicando assuntos de deveriam ser proibidos. Ainda assim, esses jornais continuaram apoiando o regime militar, principalmente no que diz respeito às políticas econômicas”, analisa.
Para professor do Iacs/UFF, havia uma relação de ambivalência entre os jornalistas e as empresas de comunicação com o governo militar. “Esta é uma visão mais complexificada e menos reducionista nessa discussão sobre o uso das memórias nesse passado autoritário. As críticas ao governo se limitavam ao terreno da censura e da liberdade, que atingiam mais diretamente as empresas jornalísticas. Havia uma postura de resistência com a publicação de versos de Camões no espaço de uma matéria que fora censurada, no caso do Estado de S.Paulo. Mas em relação a outras iniciativas do governo, em grande medida, a posição era de apoio – como, por exemplo, no chamado ‘milagre econômico’”, menciona Castilho em referência à política de importação de bens industrializados e realização de obras faraônicas, como a Rodovia Transamazônica, que jamais foram concluídas, entre outras medidas. O resultado dessa política foi o aumento exponencial da inflação, da dívida externa e da corrupção, silenciada à época pelos meios de comunicação.
Por que recordar?
A memória do golpe militar de 1964 é objeto de disputa que, no momento atual, está ainda mais acirrada. Para a historiadora Maria Paula Araújo, professora titular do Instituto de História (IH) da UFRJ, é preciso recordar aquele período histórico. “Todos os países que viveram golpes militares, seguidos de ditaduras de vários tipos, sabem a importância de, ao sair desse governo autoritário e iniciar uma caminhada rumo a um estado democrático de direito, não esquecer essa experiência”, afirma. Araújo menciona o termo “justiça de transição”, criado por organismos de direitos humanos e juristas, para explicar a relevância de marcar a data. “Depois de uma experiência de Estado autoritário, é fundamental que a sociedade saiba o que aconteceu, que as vítimas dessas violências tenham um espaço para lembrar e denunciar. E mais: não basta lembrar, é preciso repudiar o que foi feito”, diz ela.
Por esse motivo, a professora do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS)/IH/UFRJ aponta o trabalho das comissões da verdade, criadas durante o governo Dilma Rousseff (2011-2014/2015-2016) como fundamentais nesse processo. “É também importante que essas vítimas sejam reparadas. Isso ocorreu no Brasil: pessoas foram realocadas em postos de trabalho, algumas foram indenizadas, houve um pedido de perdão formal por parte do Estado brasileiro”, aponta. Para Araújo, entretanto, nesse processo de justiça de transição, faltou ao Estado brasileiro responsabilizar os autores de mortes e desaparecimentos. “Nisso, nós não avançamos no Brasil. Há uma diferença entre responsabilização e punição, mas que eles fossem, ao menos [ênfase dela], responsabilizados – ligados àquilo e aquela ação repudiada”, analisa.
A professora também critica a posição do atual governo federal em relação ao golpe. “Outra coisa importante, que nós pensávamos que houvéssemos feito, mas não fizemos, é o repúdio da sociedade àquelas práticas. Na medida em que temos um presidente que elogia torturadores, que diz que ‘a ditadura matou pouco’, isso é muitíssimo grave”, aponta. “Enquanto não houver, por parte do Estado, o repúdio explícito ao golpe de 64 e a todas as violações que ocorreram a partir daí, enquanto não houver um compromisso explícito por parte do Estado e de toda a sociedade em defesa da democracia, essa história não estará fechada”, completa.
Anistia
No dia 28 de agosto de 1979, o então presidente João Baptista Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, que, em seu artigo 1º, anistiava todos aqueles que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, aos servidores públicos que tiveram os direitos políticos suspensos e dirigentes sindicais punidos com os atos institucionais decretados durante o período da ditadura militar. Excetuam-se da anistia “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”, de acordo com o que consta no artigo 2º da referida lei. Ainda assim, é necessário destacar que não houve punição, ou qualquer tipo de responsabilização, aos militares que cometeram torturas e assassinatos.
Por outro lado, há que se ressaltar que o governo ainda era comandado por militares, que tinham vantagem na disputa com a sociedade civil, que, por sua vez, pressionava por mudanças no cenário político. “O regime não queria a anistia ampla, geral e irrestrita. Ao mesmo tempo, ele tinha forças para impor regras na transição. Ele perdeu. Por exemplo, ele não queria que pessoas que tivessem participado da luta armada fossem anistiadas. Não queria nenhuma tolerância, queria definir um limite de aplicação”, afirma o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva. “O próprio processo da constituição da Comissão da Memória e da Verdade é um mecanismo de aplicação de justiça. O Estado reconhecendo que cometeu crimes, em si, já é um processo decisivo. Houve luta, houve disputa, houve avanços e retrocessos”, analisa.
Redemocratização
A transição democrática do país foi um processo de negociação entre as forças conservadoras que estavam no poder e as progressistas, que se organizavam para reivindicar a retomada e a conquista de legítimos direitos. Essas tensões, inerentes ao processo democrático, estiveram postas no movimento pelas Diretas Já, em 1984 – que culminou com a vitória das forças conservadoras, marcada pela rejeição à Emenda Dante de Oliveira −, e na Constituinte de 1987, em que estiveram representados diversos atores da sociedade civil naquele momento marcante da história brasileira. “Ela, a Constituição de 1988, enunciou a possibilidade de um programa democrático, mas que ainda manteve monopólios, como terra e comunicação, que não foram democratizados, e a tutela policial e militar. Então, essas contradições, evidentemente, vão marcar o problema dessa condução da nossa transição e dos seus acordos”, analisa Cunca.
Para ele, faltaram mudanças no campo da Segurança Pública para que a democracia brasileira fosse, de fato, restituída. “Nós sempre vivemos à sombra de uma transição jurídica e de uma justiça de transição limitada em conseguir estabelecer o corte simbólico, material, jurídico e institucional, que tocasse no sistema repressivo, na dinâmica militar, no Judiciário, que conseguisse um efeito de democratização à altura do projeto cidadão expresso na Constituinte de 1988 e na fala emblemática de Ulisses Guimarães”, afirma, em referência ao discurso do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no Congresso Nacional, em 2 de fevereiro de 1987. “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, proclamou Guimarães na ocasião.
Cunca, entretanto, reconhece as conquistas das forças populares, que tiveram êxito naquele processo. “Isso também significou um movimento que levou, aos poucos, a uma adesão crescente das forças de esquerda ao paradigma institucional e democrático, e aceitando, inclusive, essa limitação. E foi na aceitação dessa limitação, no reconhecimento de estar submetido a esses acordos, que essas forças foram negociando por dentro”, avalia. O professor entende que a Constituinte e o movimento das Diretas Já propiciaram uma ampliação da participação popular na política brasileira. “A grande revolução democrática brasileira se expressou na liberdade partidária ampla e no direito de voto. Esses elementos foram decisivos.”
Memória do golpe e suas implicações hoje
E como tem se dado a disputa pela memória do golpe de 1964 nos dias de hoje? De que forma abandonamos as agendas que reivindicavam direitos políticos e sociais e passamos a empunhar bandeiras como lei e ordem, militarização e o uso de armas? Existe base popular para uma nova ruptura democrática? Maria Paula Araújo interpreta como um erro de avaliação o fato de que, ainda hoje, pessoas comemorem o golpe de 1964 e clamem pelo retorno a um regime ditatorial. “Em algum momento, nós pensamos que tivéssemos derrotado esse viés autoritário e violento, que estava presente na ditadura militar. Então, eu penso que esse tenha sido o nosso grande e principal erro: a nossa avaliação da capacidade de restauração da direita e, sobretudo, da extrema direita. Pensamos que a população brasileira não aprovaria nunca certas medidas que estão sendo aprovadas agora”, analisa.
De acordo com a professora, o retorno de um pensamento de extrema direita não é um fenômeno exclusivo do Brasil. “O mundo todo, nesses últimos anos, se surpreendeu com um levante de um movimento de extrema direita, que pensávamos que tivesse sido derrotado. Eu penso que isso tenha a ver com as novas tecnologias, com as redes sociais, com as novas formas de propaganda política. E nós ainda estamos pensando sobre aquelas velhas fórmulas, que conhecemos desde quando começamos a estudar a história dos movimentos políticos e dos movimentos sociais”, acrescenta. Ao comparar os cenários de 1964 e 2021, Araújo vê poucas semelhanças. “Ao contrário do que existe hoje, em 64 havia uma frente de comunistas e trabalhistas muito forte. Havia uma atuação de intelectuais politizados, que pensavam a política no país desde os anos 1950, como Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Josué de Castro, Nise da Silveira, Milton Santos. Era uma intelectualidade pensando o Brasil mais do que pensando em seus projetos específicos. Hoje nós não temos a mesma situação”, comenta.
Cunca Bocayuva acredita que o tripé Necropolítica-Neoliberalismo-Negacionismo é o resultado de um processo que levou décadas para se instalar. “A democracia não é sempre guerra. Mas tem uma desigualdade enorme. E nessas desigualdades vários segmentos não foram contemplados, ou foram recalcados, ou perderam poder, prerrogativas. E isso vale para o sujeito da esquina que pensa: ‘Qualquer garoto/qualquer mulher/qualquer negro/qualquer gay agora tem opinião?’, ‘Não me interessam o meio ambiente, os indígenas, os quilombolas’. Esses elementos todos podem ser agrupados em um dado momento, alguns com causas legítimas, como a corrupção, formas de não atendimento, injustiças reais, políticas equivocadas”, analisa Cunca, segundo o qual esse tripé compõe uma articulação discursiva que vai ao encontro de interesses particulares, como o agronegócio, oligopólios de comunicação, o capital especulativo financeiro e aqueles que utilizam o discurso da fé e da moralidade. “Todas essas ideias estão presentes no senso comum. Foram reagrupadas de uma maneira específica no Brasil, na Hungria, na Polônia, na Rússia, nos Estados Unidos. Aqui, eles foram criados e urdidos de uma maneira que permitiu a emergência dessas forças que já estavam dentro do Estado, mas eram minoritárias, ou de forças ultraelitistas, que alimentam esse mal-estar”, comenta. “É uma construção simbólica, que diz que a história brasileira é a história da família purificada, biológica, etnicamente, militarmente, tutelada por pessoas que são portadoras da missão civilizatória, ao lado das potências do ocidente. Portanto, são subservientes a essa cruzada de base escravocrata”, completa.
O professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ entende que é preciso lembrar a todo o momento as vítimas de um regime repressor. “Nós temos o debate da questão militar, o debate da questão jurídica, mas também temos que observar: quem foi morto? De quem nós estamos falando? Estamos falando do povo, do Amarildo, da Marielle, Rubens Paiva, Honestino Guimarães, das lideranças comunitárias, camponesas, operárias, dos policiais que morrem nessa política equivocada de guerra às drogas. Então, nós estamos falando em construir uma democracia viva e isso significa dizer ampliar a representação das forças que não estão representadas”, diz Cunca, para quem os elementos bélicos e militaristas estão nos levando a um estado de barbárie. “Isso não gera um regime estável, um projeto racional de longo prazo, não gera uma ditadura militar. Não é verdade. Isso gera um estado de exceção e guerra permanente marcado pela barbárie. Isso é aniquilador”, afirma o professor.
O papel da educação
Qual é o papel da educação na construção da memória do golpe de 64, no momento em que setores da sociedade reivindicam a sua comemoração? Como falar a jovens estudantes e demais pessoas que não viveram aquele período histórico e que, muitas vezes, têm acesso a desinformações? Alessandra Carvalho é professora de História do Colégio de Aplicação (CAp) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (ProfHistória), ambos da UFRJ, e integra o Núcleo de Pesquisa História e Ensino das Ditaduras (Nuphed) e o Núcleo de Pesquisas e Práticas em Ensino de História (Nuppeh). Segundo ela, é importante estimular que os próprios alunos busquem informações a respeito da ditadura militar. “Na última vez em que eu lecionei sobre isso, deixei-os livres para pesquisarem sobre qualquer tema relacionado àquele período. Isso deu a eles a oportunidade de se aprofundarem naquilo que gostavam mais. Um grupo de alunos que gostava de futebol pesquisou sobre a relação da ditadura com a seleção brasileira na Copa de 1970 e a democracia corintiana. Outro grupo entrevistou militares e chegou à conclusão de que essas experiências foram muito diversas”, comenta. Para Carvalho, o resultado tem sido positivo em termos de aprendizagem. “Não fui eu, Alessandra, que os ensinei sobre a ditadura. Eles é que foram construindo, através dos seus interesses pessoais, as dimensões da ditadura e da violência. Se estão dizendo que cada um tem uma opinião e tem um lado nessa história, então que seja permitido a eles fazer uma pesquisa sistemática para chegarem às suas próprias conclusões. Isso tem sido mais positivo”, conclui.
A professora do CAp/UFRJ entende que esse colégio é um ambiente no qual questões ligadas à democracia, luta social e ao ativismo político estão frequentemente presentes nos debates dos estudantes. Ainda assim, existem questionamentos sobre o tema nos círculos familiares e que chegam até o conhecimento dos professores. Além disso, Carvalho tem a dimensão do papel do educador em uma sociedade socialmente desigual, em que o estado democrático de direito não está acessível a todos. “Eu, como professora universitária, tenho a melhor experiência possível com a democracia. Mas qual é a experiência das pessoas com esse regime, no seu cotidiano, considerando elementos de classe, de raça e gênero?”, indaga ela. “Será que o estado democrático de direito sobe o morro? Como eu vou dizer para um adolescente morador de uma favela que a escola pública é um direito? Será que ele entende aquele espaço dessa maneira? O que nós precisamos fazer para fortalecer isso, para que efetivamente essas pessoas desfrutem dos direitos legalmente assegurados a elas?”
Saídas possíveis
Como caminhar rumo a uma sociedade que preze os valores democráticos e repudie o arbítrio e a violência? Todos os professores ouvidos nesta reportagem são unânimes em afirmar que a democracia pressupõe, sim, tensões, mas, sobretudo, a escuta e o diálogo. “Como se desconstrói o discurso da guerra? Entendendo que há uma guerra e praticando a contraguerra. Ou seja, é preciso uma política de contraviolência, contundente e afirmativa”, destaca Cunca Bocayuva. “O planeta tem agendas. E essas são agendas de vida. Não existe agenda que não passe por uma cooperação internacional da vacina, pela agenda climática, pela questão nutricional/alimentar, hídrica, pela democratização do acesso à internet. Não é verdade que o mundo ficará melhor se ele estiver ao livre-arbítrio das forças do saque. O que deve nos orientar é a agenda da vida”, acrescenta o professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ.
Maria Paula Araújo acredita no poder da educação: “Eu penso que contar essas histórias para as crianças seja uma forma de valorização da vida, dos direitos humanos. Esse trabalho com a História tem uma implicação muito grande com o presente e o futuro. Então, penso que, fundamentalmente, nós precisamos resistir. E esse campo da História e das Ciências Humanas tem um papel grande”.
Para Alessandra Carvalho, a saída está na ampliação do diálogo para o entendimento do lugar do outro. “O conflito faz parte. O que não deve fazer parte é que esse conflito seja resolvido através da imposição de um sobre o outro. Nos últimos tempos, esses conflitos políticos transbordaram a fronteira do pessoal e para a esfera familiar. Essa é uma questão em que nós vamos precisar dar um passo atrás”, analisa. “Para restabelecer esse diálogo, vamos ter que ouvir, desconstruir o seu inimigo. Isso é importante até mesmo para saber como contra-argumentar. Neste momento, isso é ainda mais difícil, porque há um estímulo ao enfrentamento e à não escuta. Eu acho que isso é possível, mas vai levar tempo e precisaremos construir outra conjuntura mais favorável ao diálogo”, conclui.