Para Começar a Entender o Estado Islâmico explica a atuação e o impacto do grupo terrorista no mundo
Por João Guilherme Tuasco – Fonte: www.ufrj.br
Na conquista de cidades no Oriente Médio para estabelecer seu próprio território, o Estado Islâmico (EI), criado em 2013, promove o terror nas populações a partir de interpretações deturpadas do Islã e age, principalmente, no Iraque e na Síria. Articulado internacionalmente, o grupo terrorista já cometeu uma série de atentados, como os do teatro Bataclan, em Paris, em 2015; do aeroporto de Cabul, Afeganistão, 2021, em meio à ascensão do talibã e à retirada das tropas americanas do país; da mesquita em Peshawar, Paquistão, em 2022, contra a minoria xiita do Islã; e em Al-Sukhnah, Síria, em fevereiro deste ano. O Estado Islâmico é o tema do novo lançamento da Editora UFRJ, Para Começar a Entender o Estado Islâmico, organizado por pesquisadores do Grupo de Trabalho de Oriente Médio e Mundo Muçulmano (GTOMMM) da Universidade de São Paulo (USP).
O livro consegue aproximar quem só tem noções do que é a organização terrorista e aquele que já estuda o assunto. A obra pega pela mão o leitor mais leigo e apresenta alguns conceitos básicos na introdução, além de ter um glossário sobre os temas e mapas para explicar a movimentação do EI. A primeira parte, História do Estado Islâmico, fala da origem, do apogeu e do declínio do grupo; a segunda, Aspectos Temáticos, aprofunda questões como o impacto das ideias, a perseguição religiosa e a propaganda midiática da organização; a terceira, Além das Fronteiras do Estado Islâmico, traz questões atuais sobre as estratégias dele. Com 12 capítulos, os textos foram escritos pelos pesquisadores do GTOMMM e organizados por Augusto Leão e Danilo Bassi, que também participam do GT.
O Conexão UFRJ conversou com Augusto Leão, um dos organizadores de Para Começar a Entender o Estado Islâmico. Confira a entrevista:
Conexão UFRJ: Por que organizar e também escrever um livro sobre o Estado islâmico?
Augusto: A ascensão do autoproclamado Estado Islâmico é um dos eventos mais importantes para a redefinição das relações entre povos e países no Oriente Médio e outras regiões do mundo nos anos 2010. Primeiro, porque o grupo causou efeitos nefastos de perdas humanas, destruição dos laços sociais nas comunidades locais, destruição de patrimônio cultural e terror a partir de suas ações. Esse fenômeno interessa conhecer melhor para podermos, inclusive, evitar ações similares, causadas pelo mesmo sentimento de violência e frustração que motivou as pessoas que se filiaram a ele.
Além disso, o EI foi um elemento que motivou reflexões sobre o conceito de Estado contemporâneo e sobre o que caracteriza ser islâmico, além de ter orientado as relações entre os países do Oriente Médio e os demais países do mundo. Para combater o EI, foi formada uma coalizão internacional de 14 países, e mais de 50 países apoiadores. E o grupo teve também efeitos muito negativos: em 2020, mais de 20 grupos terroristas em diferentes regiões do mundo declararam afiliação ou algum tipo de apoio ao EI. Incluem-se o EI na África Ocidental (anteriormente Jamaʿatu Ahlis-Sunna Liddaʿawati wal-Jihad, mais conhecido como Boko Haram), presente na Nigéria; o Estado Islâmico nas Filipinas (anteriormente Grupo Abu Sayyaf); o EI na Argélia (antes Jund al-Khilafa fi Ard al-Jazair); e o EI na Província de Khorasan (ativo no Paquistão e no Afeganistão), entre outros.
A ideia de preparar um livro sobre o tema representou a oportunidade de apresentar esse tema para pessoas que pesquisam o assunto no Brasil ou têm interesse sobre o Oriente Médio e o Islã.
Conexão UFRJ: Qual a diferença entre Estado Islâmico, islã e islamismo?
Augusto: Islã é uma religião monoteísta conectada com o judaísmo e o cristianismo, que reconhece Maomé como um profeta que veio ao mundo para completar a religião que tinha sido revelada por meio de profetas anteriores, como Abraão, Moisés e Jesus. O Islã utiliza o Corão como livro sagrado e principal fonte de conduta ética e legal. A religião está baseada em cinco pilares: chahada (shahadah) − fé e aceitação dos credos −, representada na frase “não há outro Deus além de Deus, Maomé é seu profeta”; salá (salah), orações cinco vezes ao dia; zakat, caridade; saum (sawn), o jejum durante o Ramadã (que em 2023 terminou em 21 de abril); e o hajj, a peregrinação a Meca. Os islâmicos, também chamados muçulmanos, somam quase 2 bilhões de pessoas no mundo.
Islamismo é um movimento político de inspiração religiosa. Como ideologia, prega a utilização de partes do Islã para fomentar ideias extremistas e fundamentalistas com objetivo político. Geralmente, as ideias islamistas dizem que a legislação e o código moral das sociedades sejam baseados na xaria, conjunto de leis islâmicas que deriva principalmente do Corão e de relatos transmitidos por Maomé (hadiths). São compreendidas como leis divinas imutáveis. Essas ideias extremistas e fundamentalistas podem, ou não, estar associadas com práticas violentas e autoritárias. Nesse sentido, o islamismo está próximo de movimentos políticos fundamentalistas dentro das religiões cristãs, como aqueles que motivam ataques a religiões e símbolos de religiões de matriz africana no Brasil.
O autoproclamado Estado Islâmico é uma organização terrorista que controlou territórios entre o norte e o oeste do Iraque e o norte e o leste da Síria entre 2011 e 2019. O termo refere-se ao nome adotado pelo grupo, que buscou criar uma estrutura similar a um Estado e reivindicar uma interpretação distorcida da religião islâmica para justificar suas ações violentas.
Conexão UFRJ: Vocês afirmam no livro que o Estado Islâmico não é um Estado. Pode explicar melhor o porquê?
Augusto: Existem diversos debates contemporâneos sobre o que caracteriza um Estado. Apesar de variações, é possível identificar três elementos básicos: uma população, o controle de um território e o “monopólio do uso legítimo da violência”, uma definição proposta por Max Weber. Esse monopólio do uso legítimo da violência significa que existe uma organização política estabelecida como a única autoridade para definir regras e, baseando-se nessas regras, as leis, pode utilizar a força (a violência) para que a sua população cumpra com essas regras. Isso pode ocorrer através de notificações, multas, reparações, processos judiciais, penas de restrição de liberdade etc. Há situações, por exemplo, em que uma autoridade não consegue estabelecer-se como a única organização política com poder em um território, como acontece na Líbia, que tem dois governos em conflito, ou mesmo sobre territórios em poder de organizações criminosas, como o tráfico de drogas ou a milícia, no Brasil.
O autoproclamado Estado Islâmico ocupou efetivamente um território e estabeleceu ali atividades econômicas, como a produção de trigo e extração de petróleo, a partir das estruturas que já existiam no local. Grande parte de seu financiamento vinha de atividades criminosas, como extorsão da população local, saques e confiscos, ou resgates de pessoas sequestradas. Muitas pessoas que estavam no território sob o controle do EI eram frequentemente ameaçadas e viviam com medo. A aplicação das regras e punições era injusta e os membros do EI tinham poderes especiais e estavam acima das leis, isentos de qualquer restrição de seu próprio poder. Portanto, parte da população era, na verdade, refém em vez de cidadão. Nesse sentido, não é possível dizer que o EI cumpre com elementos necessários para ser um Estado.
Com base na atuação do EI, vários questionamentos sobre o conceito de Estado ressurgem, como: se um Estado não protege seus cidadãos ou uma parte deles (como uma minoria étnica ou religiosa), deixa-se de ser um Estado por conta disso? Outros países devem intervir nesse caso? O que acontece quando há disputa pela autoridade sobre um território? Há momentos em que essa disputa por autoridade é justa (por exemplo, em uma ditadura que oprime sua população)? Por isso argumentamos no livro que, mesmo descartando a possibilidade de que o EI tenha se constituído como um Estado (ou de que possa ser caracterizado como islâmico, verdadeiramente), sua existência teve repercussões importantes para esses dois conceitos.
Conexão UFRJ: Em que contexto o EI nasce e para que ele nasce?
Augusto: O autoproclamado Estado Islâmico nasce da confluência de diversos fatores. Um fator muito importante é a invasão dos EUA ao Iraque, em 2003, que deve ser compreendida no conjunto com uma série de invasões e medidas dentro da “Guerra ao Terror”, na qual a percepção de perigo contra grupos terroristas foi politicamente explorada nos EUA nos anos 2000, depois dos ataques terroristas em Nova Iorque e Arlington County, em setembro de 2001. A invasão ao Iraque exacerba um sentimento sectarista e violento que opõe sunitas e xiitas no país, que tem raízes no processo de colonização do Oriente Médio. Esse sentimento, somado com o fatiamento do sistema sociopolítico vigente e a formação estatal tardia, legou ao Oriente Médio estados com alto grau de ilegitimidade, nos quais as identidades são um fator para compreender os conflitos domésticos e transnacionais. O EI soube manipular essas identidades muito bem e, com isso, atraiu grupos diferentes, como os oficiais de segurança do governo de Saddam Hussein que tinham sido expurgados do governo com a implantação da Autoridade Provisória da Coalizão, e pessoas que se sentiam excluídas socialmente e sem perspectivas de emprego ou de vida no Oriente Médio e na Europa.
O grupo nasce como uma ramificação da Al-Qaeda para levar à frente a proposta política para abranger todas as sociedades sob a égide da interpretação do EI das leis islâmicas, compreendidas como criadas por Deus (que, como vimos, tem pouca conexão com os preceitos da religião), segundo um ideal de tradição e pureza que o EI prega. De acordo com o EI, para isso, seria necessário superar as leis criadas por humanos, inclusive a organização do mundo em Estados-nação. Nesse sentido, a invasão do Iraque é interpretada como uma forma de países ocidentais, especialmente os EUA e países da Europa, estabelecerem um domínio sobre os povos islâmicos, que deveria ser combatido com violência para o estabelecimento de leis islâmicas.
Conexão UFRJ: Como o Estado Islâmico cresceu?
Augusto: O autoproclamado EI cresce ao conseguir mobilizar diversos grupos de pessoas excluídas e insatisfeitas com os sistemas de governo no Iraque e na Síria, e em alguns outros países. A organização aproveitou as guerras civis na Síria e no Iraque para expandir seu poder em meio ao caos social que se espalhou nos países da região. Além de ter tido condições de se armar militarmente, utilizou a ausência do Estado causada pelos conflitos para convencer as pessoas que era uma opção mais interessante que a situação que viviam. Então, combater a corrupção, enfrentar a concentração de renda, diminuir a violência e melhorar os serviços públicos são fundamentais para barrar ou enfraquecer o ambiente de exclusão que permite o fortalecimento do discurso islamista de movimentos como o EI.
Usando o seu “Califado Virtual”, o EI aproveitou as tecnologias digitais para entregar suas mensagens para grupos diferentes, muito além do Oriente Médio.
Conexão UFRJ: Por que o EI passou progressivamente a planejar, executar e reivindicar atentados em capitais europeias, como Paris, Londres e Bruxelas, se está ligado à região da Síria e do Iraque?
Augusto: Primeiro, é importante lembrar que, apesar de os ataques na Europa terem recebido bastante atenção, o impacto dos ataques do EI foi imensamente maior dentro da Síria, Iraque e em países próximos. O ataque mais mortal fora das fronteiras da Síria e Iraque aconteceu no Egito e matou 224 pessoas, em 2015; houve também um ataque a uma mesquita em Sanaʿa, no Iêmen, que matou 142 pessoas, também em 2015. Fora do Oriente Médio, em 2016, um ataque em Cabul, no Afeganistão, matou 80 pessoas. E também há um ataque não confirmado em Colombo, no Sri Lanka, que matou 267 pessoas, em 2019.
Segundo, que o EI não criou uma estrutura de coordenação descentralizada. Em vários casos, não há um envolvimento direto do grupo terrorista, e sim a atuação de “lobos solitários”, pessoas que perpetram atos terroristas atuando individualmente, sem um comando ou apoio material de uma organização ou grupo. Essas pessoas podem se inspirar na ideologia de um ou mais grupos para desenvolver suas ações e geralmente atuam nas suas próprias comunidades. Em geral, o EI conseguiu recrutar pessoas que eram socialmente excluídas, não tinham emprego ou se sentiam à margem. O “Califado Virtual” do EI, com a extensa utilização de tecnologias para o convencimento e recrutamento, possibilitou essa forma de atuação de maneira mais forte.
Por fim, a coalizão que promoveu a invasão ao Iraque era formada por Austrália, Espanha, Estados Unidos da América, Polônia, Reino Unido e 45 outros países que apoiaram a invasão. Com a invasão, o EI interpretou que todo o mundo muçulmano estaria sendo invadido por países ocidentais, e isso motivou os ataques em diversos lugares do mundo.
Conexão UFRJ: O Estado Islâmico está em declínio?
Augusto: Sim. A organização autoproclamada Estado Islâmico, que atuou na Síria e no Iraque entre 2010 e 2019, quase não existe mais. Porém, é crucial ter consciência de que essa organização inspirou mais de 20 outros grupos terroristas que continuam em atuação. Além disso, o EI disseminou um modo de operação utilizando tecnologias digitais e focando em jovens que se sentem deslocados e excluídos, que está sendo aproveitado por outros grupos que promovem ações violentas e procuram causar terror. No livro, avaliamos que a possibilidade de ataques terroristas com inspiração no EI no Brasil é muito pouco provável. Por outro lado, tivemos no começo de 2023 uma série de ataques violentos em escolas. Ainda se sabe muito pouco sobre esses ataques, mas um elemento em comum que está em investigação é que esses perpetradores de ataques no Brasil foram convencidos por uma rede de pessoas atuantes na internet. Também pela internet se informaram sobre os métodos e formas de atacar, e conseguiram as armas necessárias. Os ataques de 2023 não foram motivados por fundamentalismo religioso, mas há outras ideologias extremistas com possibilidade de recrutar pessoas e inspirar grupos.
Augusto Veloso Leão é doutor em Relações Internacionais e participa do Grupo de Trabalho de Oriente Médio e Mundo Muçulmano da USP. Além disso, integra o Grupo de Estudos sobre Distribuição Espacial da População da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC Minas) e o Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Danilo Guiral Bassi é mestre em História Social, pesquisador do Grupo de Trabalho de Oriente Médio e Mundo Muçulmano do Laboratório de Estudos da Ásia da USP e gerente de projetos de Relações Internacionais da Universidade Sorbonne.
Baixe o livro Para Começar a Entender o Estado Islâmico no site da Editora UFRJ.
*Sob supervisão da jornalista Vanessa Almeida