Na terceira e última reportagem sobre a Lei de Cotas, o Conexão UFRJ reflete sobre os possíveis caminhos de uma das maiores políticas de ação afirmativa do país
Em 2022, a Lei 12.711/12, conhecida como Lei de Cotas, completa dez anos. Como explicado na primeira reportagem da série, essa regulação prevê a reserva de vagas nas universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio para alguns grupos socialmente minorizados. Ela é, por definição, uma ação afirmativa − estabelecida dentro de uma política pública. As políticas públicas, que têm como objetivo solucionar alguma questão da sociedade, são processos desenvolvidos pelo Estado.
A referida lei prevê uma revisão após dez anos, a contar da data de sua implementação, fato que tem gerado apreensão dentro dos movimentos sociais e entre os beneficiários da ação afirmativa. Seu texto original, publicado em 29 de agosto de 2012, previa, no artigo sétimo, que essa revisão seria promovida pelo Poder Executivo. Esse dispositivo foi alterado pela Lei 13.409/16 ‒ a mesma que incluiu as pessoas com deficiência no grupo de direito às cotas. Com a alteração, foi retirada do Poder Executivo a incumbência de realizar a revisão, deixando a atribuição em aberto.
Uma das grandes discussões acerca da revisão da política de cotas passa pela questão de serem raciais ou sociais. Como mostra o primeiro texto da série, as cotas já são sociorraciais, visto que o primeiro critério para a garantia do direito é ter estudado o ensino médio em escola pública. Muitas pessoas defendem que as cotas deveriam ser exclusivamente sociais e, segundo esse argumento, pessoas brancas e não brancas são iguais, e o problema na sociedade brasileira é apenas o da desigualdade social, excluindo-se o racismo. Ao olhar apenas um lado do dilema, esse argumento não considera que muitas vezes ser pobre é uma condição diretamente ligada ao processo escravagista que fundou e até hoje alicerça a sociedade brasileira. O estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, mostrou que, independentemente do nível de instrução, pretos e pardos têm um rendimento mensal inferior ao de pessoas brancas. Além disso, dentro dos 10% da população com os menores rendimentos, pretos e pardos representam 75,2%. O estudo expõe diversas faces da desigualdade racial no país.
A ideia de “paraíso racial” como justificativa para as negativas das cotas raciais
Vivemos em um país que teve como base de sua construção o mito da democracia racial, ideia popularmente conhecida pelo trabalho Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, lançado em 1933. Segundo o sociólogo, vivemos em uma democracia racial, em que negros e brancos convivem em perfeita harmonia. Esse conceito também prega que as diferenças de raça e cor não impedem a ascensão social dos não brancos.
Ele fortalece ainda outro mito: o da meritocracia, que prega que as conquistas são obtidas exclusivamente por meio do mérito, sem considerar quaisquer diferenças entre as pessoas.
O que o mito da democracia racial tenta fazer nesse contexto é fortalecer a crença de que a questão central no Brasil se refere somente à classe. Sendo assim, brancos pobres são iguais a negros e indígenas pobres. O que essa ideia não considera, por exemplo, é o genocídio ao qual foram e ainda são submetidas as populações negra e indígena, as condições de precariedade de vida e o racismo institucional e estrutural. Essas condições não são questões de classe e perpassam a vida de pessoas não brancas no Brasil há cerca de cinco séculos.
Dyego Arruda, professor do curso de mestrado em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do Cefet-RJ e dos cursos de mestrado e doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) da UFRJ, considera necessário termos legislações que enfrentem o racismo estrutural.
“Políticas públicas que não levam em consideração a dimensão racial beneficiam os brancos pobres. Os negros pobres continuam não acessando.” E completa: “Se a nossa sociedade é racista, precisamos ter mecanismos que levem em conta a questão racial.”
Para Marcelo Padula, superintendente-geral de graduação da UFRJ, ter cotas com critério exclusivamente social não é um cenário favorável, pois não contempla as diferenças que existem dentro de um mesmo grupo social: “As questões raciais implicam outras questões. Não podemos reduzir tudo a um único fator, como o social. O patamar de saída não é o mesmo para todos os pobres.”
Seguindo ainda a linha da diferença de classes em detrimento do critério racial, há aqueles que discordam das cotas raciais argumentando que é necessário o investimento no ensino básico público. Para Dyego Arruda, a melhoria de condições de ensino não precisa excluir a dimensão racial nas políticas públicas:
O pesquisador também reforça que a discussão não precisa ser binária e maniqueísta. Para ele, é fundamental existirem políticas universalistas de combate à pobreza e de melhoria do ensino básico, mas essas medidas em nada excluem as de reserva de vagas para acesso à graduação e nem políticas públicas que levam em conta dimensão racial, já que as políticas antirracistas são fundamentais em um país estruturalmente racista como o Brasil.
“Muitas pessoas falam que a gente precisa de políticas de bem-estar voltadas à população pobre, assim como de um ensino básico de mais qualidade. Obviamente todo mundo concorda com isso. Mas as políticas de cotas e de reserva de vagas são instrumentos ativos de promoção de justiça social em menor prazo, para que a gente tenha esse movimento de trazer as pessoas negras, as pessoas historicamente invisibilizadas, a esses lugares de poder e de agência no contexto social.”
Segundo artigo publicado no site Nexo , um levantamento recente do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), em parceria com o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), mostra que tramitam hoje no Congresso Nacional cerca de 30 projetos que têm relação com a revisão da Lei 12.711/12. Das propostas, 12 são favoráveis à lei e 12 são contrárias ‒ no intuito de cancelar ou restringir seu alcance.
Um dos projetos mais conhecidos é o PL 4.125/21, de autoria do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP). A ementa do projeto diz que ele: “Altera a Lei 12.711 de 2012 a fim de dispor que as cotas para ingresso nas universidades públicas federais serão destinadas exclusivamente aos estudantes de baixa renda.” No site da Câmara dos Deputados, é possível encontrar a seguinte declaração de Kataguiri: “Além de inconstitucionais, as políticas de discriminação positiva não fazem o menor sentido. Quem é excluído da educação é o pobre, que entra cedo no mercado de trabalho e depende dos serviços educacionais do Estado, que em geral são de péssima qualidade. A pobreza não tem cor: atinge negros e brancos”. A equipe do deputado foi procurada pela nossa produção, mas não respondeu.
A discussão sobre a constitucionalidade das cotas raciais foi realizada em 2012, quando o plenário do STF se reuniu para julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 (ADPF 186), impetrada pelo partido Democratas, na figura do senador Demóstenes Torres, contra a política de ação afirmativa da UnB. Após três dias de deliberação, os ministros decidiram por unanimidade pela improcedência da ação, seguindo o voto do relator, Ricardo Lewandowski, e declarando, portanto, a política de cotas raciais adotadas pela UnB compatível com a Constituição de 1988.
Atual Reitoria da UFRJ se posiciona sobre o futuro da reserva de vagas raciais
A reitora da instituição, Denise Pires de Carvalho, considera importante existirem formas de democratização para o acesso às universidades. “A Reitoria da UFRJ é absolutamente favorável a qualquer forma de inclusão, diversidade e democratização no acesso. Tanto as cotas sociais quanto as étnico-raciais e as para pessoas com deficiência são fundamentais. A diversidade é importante para recompor o tecido social no Brasil, desde sempre muito esgarçado. E para isso não cabe mais preconceito. A questão étnico-racial é uma guerra silenciosa, assim como a questão de gênero.”
Para continuar atuando de forma antirracista, a gestão de Denise Pires de Carvalho pretende criar, até o fim do primeiro semestre de 2022, uma nova estrutura de políticas raciais ligada à Reitoria. Segundo a reitora, a iniciativa é importante porque, com a mudança estatutária, é difícil que essa estrutura seja desfeita, uma vez que dependeria de aprovação do Conselho Universitário (Consuni). É uma situação diferente de um ato executado pela Reitoria, que pode ser revogado pela próxima gestão, como acontece com a Comissão de Heteroidentificação.
A reitora posiciona-se favorável à manutenção da Lei 12.711 e declarou que, mesmo que a legislação sofra alterações drásticas, a UFRJ tende a continuar adotando cotas raciais em sua forma de acesso aos cursos de graduação.
“A lei pode ser alterada, ela só não pode proibir a utilização das cotas. Nós temos autonomia, mas não temos soberania, isso é uma coisa que muita gente confunde. Então mesmo se a lei for revogada, temos autonomia para manter as cotas como estão. Basta uma decisão do colegiado máximo, que é Conselho Universitário. Eu tenho certeza absoluta que o Consuni vai aprovar por unanimidade a manutenção das cotas.”