Prof. Heloi Moreira homenageia Pedro Carlos da Silva Telles, que faleceu aos 95 anos em 1 de setembro de 2020
Por Prof. Heloi Moreira
Corria o ano de 1996. Eu acabara de assumir a direção da Escola de Engenharia – EE/UFRJ. Como Vice-diretor eu precisava completar o mandato do Prof. José Hain Benzecry iniciado em 1994 e que, por razões pessoais, precisou sair do cargo.
Estava preocupado, pois havia estudado engenharia em outra universidade, na PUC/RJ. Perguntava-me como representar a instituição se não conhecia com profundidade a sua trajetória histórica. Havia passado 23 anos com a minha atenção praticamente dedicada ao Laboratório de Máquinas Elétricas do Departamento de Eletrotécnica, nome na época do atual Departamento de Engenharia Elétrica da POLI/UFRJ.
Tinha um conhecimento por alto da história da Escola. Lembrava-me que em 1992, sob a direção do Prof. Cláudio Luiz Baraúna Vieira, a EE/UFRJ havia comemorado seus 200 anos de criação, sob o nome de Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho. Mas, por outro lado, que em 1974 a Associação dos Antigos Alunos da Politécnica – A³P havia realizado uma série de eventos em comemoração aos 100 anos da Escola Politécnica! E onde estava a Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, a famosa ENE da UB dos meus tempos de vestibular? Isso tudo era muito confuso para mim.
Certo dia, após almoçar no “Burguesão” do CT, passei por um quiosque de alvenaria que havia no piso térreo em frente a entrada do Bloco H. Não era um quiosque de alimentação e sim ali eram vendidos jornais do dia, revistas, livros, materiais diversos para estudantes como canetas, etc. Entrei despreocupadamente e me deparei com um livro de capa azul, grosso, intitulado História da Engenharia no Brasil – Séculos XVI a XIX, de Pedro Carlos da Silva Telles. Imediatamente pensei: aqui deve ter tudo que eu preciso saber. Folheando-o, encontrei no sumário o Capítulo X: A Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Não tive dúvidas, comprei-o. No caminho encontrei o Prof. Fernando Amorim, da Naval, e mostrei o livro para ele.
– Olha o que eu encontrei lá no quiosque do H, falei com alegria.
– Ah sim, mas tem um outro volume, o relativo ao Século XX, retrucou.
Quase não acreditei. Havia encontrado o caminho para resolver a minha constante preocupação. Naquele dia não voltei direto para casa. Fui para o centro da cidade em busca do segundo volume. Não o encontrei nas livrarias modernas, mas um vendedor me indicou a Livraria São José, que estava funcionando na Rua 1º de Março, perto da Rua do Ouvidor. A rigor era um sebo que havia iniciado as suas atividades na Rua São José. Ali encontrei o segundo volume. Tão denso quanto o primeiro.
Fiquei literalmente apaixonado pelas duas obras. Professores têm disso: apaixonam-se pelos livros que dirimiram as suas dúvidas.
Em casa, comecei a analisar o primeiro volume. Logo no Capítulo I – A engenharia no Brasil – Colônia, observei que nele havia nada mais nada menos, do que 244 referências! Fui ver os outros capítulos e esse grande número de citações de repetia! Peguei o segundo volume e encontrei no capítulo “As Estradas de Ferro” 370 citações! Não tive dúvidas: essa é uma obra monumental, impossível de ser igualada.
Desde então essas obras do Prof. Silva Telles são as minhas principais referências para a história da engenharia brasileira. E, pelo o que conheço, raríssimas são as dissertações de mestrado e teses de doutorado, pelo Brasil afora, que não se referenciam ao Prof. Silva Telles.
Conheci-o em 1998, quando da minha primeira posse como diretor da Escola Politécnica. O Prof. Flávio Miguez de Mello era o Presidente da A³P e convidou todo o corpo social da entidade para o evento. Entre inúmeros ex-alunos e professores, alguns muito conhecidos, lá estava o Prof. Silva Telles. Apresentado a ele chamou-me a atenção sua figura franzina, com uma fala mansa e suave. Mas um olhar atento. Ao final da cerimônia, ao se despedir, simplesmente me disse: Parabéns. Pensei comigo, de poucas palavras faladas, mas quanto as escritas…
E assim iniciou em mim a grande admiração que nutri por ele. Falávamos por telefone, eu sempre querendo saber algo mais sobre a história da Politécnica e da engenharia brasileira. Lembro-me que em certa ocasião lhe perguntei se a Av. Rebouças, em São Paulo, tinha essa denominação em homenagem ao André Rebouças ou ao irmão José Rebouças, na medida em que esse último havia se radicado naquela cidade. Prontamente respondeu: ao André! E então indaguei-o sobre o porquê. Simplesmente respondeu: porque foi o mais importante. E assim ficou.
Tal foi o uso dos seus livros que a capa de um deles começou a se desprender. Mandei fazer uma encadernação capa dura primorosa e, após prontas, pensei: preciso pegar a dedicatória dele. Telefonei para ele e disse o que desejava. Assim, combinamos de eu ir a sua casa na Rua Voluntários da Pátria. Lá chegando conheci a sua esposa, D. Vera, figura também franzina e doce como ele. Lembrei-me da minha mãe. Dona Vera ofereceu-me um cafezinho delicioso em xícara de porcelana. Após isso, sempre que combinávamos de eu ir à sua casa eu brincava perguntando: mas terá aquele cafezinho da D. Vera? E ele respondia: Sim! Infelizmente, após 2014 não houve mais o cafezinho da D. Vera.
Em 1999 começou um movimento entre alguns professores para que fosse resgatado o nome de origem da Escola de Engenharia como instituição civil, o que havia ocorrido em 1874: Escola Politécnica. Procurei-o e comentei o que estava ocorrendo. Disse-me então: – De muito boa providência. Excelente iniciativa.
Perguntei se ele poderia escrever um texto para ser apresentado à Congregação da Escola apoiando a iniciativa. – Sim, farei isso, disse simplesmente. E assim, a Escola Politécnica da UFRJ resgatou o seu nome de origem, ocorrido oficialmente, somente em 2004.
Enquanto estive como Diretor da Escola Politécnica volta e meia insistia junto ao Prof. Silva Telles para escrever um livro dedicado somente a história da Escola. Infelizmente, por razões financeiras, não conseguimos concretizar essa idéia na minha gestão. Mas, felizmente, o Diretor em seguida, Prof. Ericksson Rocha e Almendra, demonstrando sensibilidade às coisas importantes para a Escola, deu condições para a viabilização desse projeto. Assim, em 2010, o Prof. Silva Telles lançou o livro “Escola Politécnica da UFRJ: a mais antiga das Américas, 1792: das origens à atualidade.” E deixou-me emocionado e profundamente agradecido quando li no prefácio do livro: “tive grande alegria quando o ilustre professor Heloi Moreira, então diretor da Escola, me pediu para escrever esta história.”
E não poderia ser outro a fazê-lo. Do alto do seu vasto conhecimento, das profundezas dos meandros dessa rica história, do seu lastro como historiador da engenharia brasileira para buscar os mais importantes fatos históricos, só mesmo o Professor Pedro Carlos da Silva Telles apresentava o estofo necessário para tanto.
Em 2006, estando como Presidente do Clube de Engenharia, o Diretor Cultural Alcides Lyra Lopes propôs que incentivássemos o Prof. Silva Telles a dar continuidade ao seu livro. Afinal o Clube de Engenharia esteve envolvido nas edições dos dois volumes que compõem a sua obra.
O segundo volume, relativo ao Século XX, abrangeu até o início da década de 1980 e, em consequência, já se havia passado mais de 25 anos. Convidamos o Prof. Silva Telles para conversarmos sobre a idéia. Acertadamente, ele nos fez ver o quanto difícil e oneroso seria o empreendimento. A engenharia havia se desenvolvido e diversificado muito durante esse pouco tempo, tanto pelo uso de novos materiais, quanto pela aplicação dos computadores nos projetos, técnicas construtivas e de manutenção, o desenvolvimento da eletrônica e a sua interface com quase todos os inúmeros novos ramos da engenharia, as questões ambientais e de segurança, etc. Enfim, tal projeto lhe exigiria um enorme esforço, uma grande equipe e um longo tempo. Prof. Silva Telles tinha toda razão.
Isso reforçou a minha noção da grandiosidade da sua obra, praticamente impossível de ser continuada nos mesmos moldes que ele a iniciou e concluiu.
Em 2009, realizando meu doutoramento em história da ciência na UFRJ, apresentei um trabalho sobre historiografia da engenharia brasileira relativa ao Século XIX. Como não poderia deixar de ser, a grande referência foi o primeiro volume de sua obra, História da Engenharia no Brasil, Séculos XVI a XIX. Naquela ocasião tive a oportunidade e o orgulho de fazer a seguinte apreciação sobre o seu livro: “Sem sombra de dúvida, o trabalho de Pedro Carlos da Silva Telles que se está considerando é a obra mais completa sobre a engenharia brasileira no século XIX e anteriores. A partir da sua edição, esse livro tem sido referência para todos os livros, teses e artigos publicados sobre a história da engenharia brasileira desse período. Ao prefaciar a sua obra, Silva Telles demonstra o seu espírito meticuloso e de quem tem a experiência e a percepção de que fazer história é um processo de construção acumulativa, e que nenhum autor, individualmente ou não, consegue esgotar qualquer assunto”, escrevi.
Em seguida, transcrevi parte do prefácio que o Prof. Silva Telles escreveu em maio de 1984:
“Esse livro não é, nem poderia ser, um trabalho de pesquisa exaustiva, o que exigiria uma verdadeira equipe, durante longo tempo e em vários pontos do Brasil e até no exterior. A consulta às fontes primárias foi pequena, tendo sido a maior parte em material já publicado algum dia: livros, revistas, jornais, artigos, etc. Acredito, por isso, que as descobertas sejam poucas. A minha intenção foi, principalmente, fazer um apanhado geral da evolução da engenharia entre nós, em seus diversos aspectos, reavivando a memória de fatos e de nomes quase ignorados ou já de há muitos esquecidos. É como se fosse a tentativa de montagem de um imenso puzzle, cujas pedras estão espalhadas e perdidas em um enorme número de fontes por esse Brasil afora. Iniciei apenas essa montagem: muitas outras pedras ainda estão faltando, que espero venham a ser objeto de estudo e pesquisa, de outros que tenham mais tempo, mais condições ou mais paciência para encontrá-las. Por esse motivo, é provável que tenha havido omissões de fatos ou personalidades, talvez importantes, ligados à história da engenharia no Brasil. Devido a impossibilidade de conferir e confrontar todo o imenso volume de informações colhidas nas diversas fontes bibliográficas, é possível também que tenham escapado algumas incorreções. Por tudo isto, peço desculpas e compreensão ao leitor e ao público”.
Embora não possa concordar com a frase inicial – “Esse livro não é, nem poderia ser, um trabalho de pesquisa exaustiva”-, pois não conheço outra obra sobre o assunto tão exaustiva e profunda, suas palavras demonstram uma personalidade honesta, criteriosa, modesta, próprias de quem faz um trabalho sério, duradouro, com vigor e dedicando-se ao máximo que suas forças permitem. Essa era imagem que construí sobre o Prof. Silva Telles: uma pessoa que aparentemente poderia ser considerada frágil, mas que, a rigor, possuía a fortaleza dos grandes homens.
No início de 2017 recebi uma ligação da senhora que lhe ajudava na lida diária:
– Prof. Heloi, disse, o Prof. Silva Telles quer falar com o senhor.
– Ótimo, será muito bom conversar com ele, respondi.
Ela passou o telefone para ele.
– Alô, disse com voz enfraquecida.
– Prof. Silva Telles, como o senhor vai?
– Vou bem, disse-me ele. E nada mais acrescentou.
Diante do silêncio, indaguei:
– E o senhor, o que está fazendo? Escrevendo algum novo livro? perguntei.
– Sim, foi a sua resposta. E novamente seguiu-se o silêncio
Percebendo a dificuldade que estava ocorrendo em se entabular um diálogo, sugeri:
– Eu vou lhe visitar. Poderemos conversar melhor.
– Venha, concluiu. E assim a ligação se encerrou.
Dias depois estive em sua casa. Lá chegando, encontrei-o na sua sala de preferência, postado a frente da sua mesa de trabalho e expondo em cima dela todos os livros que escreveu. Contou-me que estava lançando um livro sobre os grandes empreendimentos da engenharia brasileira, já em fase final de editoração. Conversamos sobre seus livros e perguntei qual era o que ele mais gostava. Disse-me:
– De todos!
Fizemos umas fotos. Pouco tempo depois recebi o convite para o lançamento do livro “Notáveis empreendimentos da Engenharia no Brasil”, no IHGB. Estivemos presente, juntamente com Flávio Miguez de Mello, Olavo Cabral Ramos Filho, Francis Bogossian e outros. Sua diligente filha Lucia o acompanhava, escrevendo a dedicatória e ele só assinava. Seu olhar não apresentava mais a vivacidade de outrora. Olhando distante, parecia pensar e com toda razão: “Escrevi a maior obra sobre a história da engenharia brasileira”.
Este é o meu tributo a Pedro Carlos da Silva Telles, com grande admiração.
Heloi Moreira, setembro de 2020.