Capoeira: resistência imaterial

Com mais de 300 anos de existência, a capoeira é hoje patrimônio imaterial da humanidade e um símbolo da resistência negra

Por Tassia Menezes – Fonte: www.ufrj.br

O berimbau normalmente é quem anuncia que uma roda de capoeira vai começar. Arte, luta, dança… Às vezes é difícil especificar do que se trata esse jogo ancestral. Provavelmente, não é mesmo para ser definido, mas sim uma experiência a ser vivida. Em tempos pandêmicos, no entanto, falta o berimbau, a roda, o encontro e o movimento. Ainda assim, não falta a resistência, possivelmente o principal atributo dessa arte secular.

Com uma existência estimada entre 300 e 400 anos, a capoeira surge como forma de defesa dos negros que eram escravizados no Brasil desde o século XVI. Marginalizada e perseguida, foi proibida, e sua execução foi considerada um crime durante 47 anos, mesmo após a Abolição da Escravatura – de 1890 a 1937, conforme disposto no artigo 402 do Código Penal. Quem descumprisse a lei, poderia ser condenado à pena de seis meses a dois anos de prisão.

Hoje, não é mais negada, mas celebrada. Desde 2008, tanto a roda de capoeira quanto o ofício dos mestres de capoeira são reconhecidos como Patrimônio Cultural Brasileiro de Natureza Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Como consequência desse reconhecimento, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) estabeleceu a capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2014. São vitórias, mas, apesar disso, aqueles que estão à frente do movimento enxergam muitos avanços que ainda se fazem necessários.

A fim de pensar e iniciar transformações, nas três primeiras semanas de março, de 1º/3 a 18/3, o seminário “Viva Tradição Viva − Nossos Saberes Vêm de Longe” abordou esses e outros temas que perpassam a história e as vivências da capoeira, principalmente aqueles que são menos discutidos. Idealizado em 2020 pelo então professor substituto da disciplina Capoeira, Bruno Rodolfo, da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD), o evento foi uma ação viabilizada pela Pró-Reitoria de Extensão (PR-5). Com o principal objetivo de pautar uma educação antirracista, as 14 mesas trataram de temas como: branqueamento da capoeira, mulheres na capoeira, capoeira e diversidade, entre outros.

No dia 8/3, a mesa Capoeira e Patrimônio Cultural recebeu o mestre de capoeira Paulão Kikongo (RJ), a antropóloga Gesline Geovana (PR) e o contramestre e pesquisador Alanson Costela (MG) para debater as experiências com o processo de salvaguarda da capoeira em seus estados. Tendo em vista que essa etapa se segue ao reconhecimento do bem cultural como patrimônio e acontece de forma descentralizada, o objetivo da mesa foi trazer uma visão mais abrangente sobre como cada unidade federativa está lidando e realmente garantindo a preservação da capoeira.

A mesa contou com a mediação de Gabriel Cid, sociólogo, aprendiz de capoeira e um dos organizadores do evento. Ele ressaltou a preocupação em misturar conhecimento acadêmico acerca do tema “patrimônio cultural” e as experiências palpáveis dos capoeiristas. “Patrimonializar um bem é um ato político, mas também burocrático. É importante que os capoeiristas saibam como funciona a questão do patrimônio cultural do governo”, explicou.

A mesa Capoeira e Patrimônio Cultural recebeu espedcialistas sobre o tema. | Imagem: Reprodução YouTube

Patrimônio Imaterial

O processo de patrimonialização de um bem cultural é liderado pelo Iphan, instituição que atua há mais de 80 anos como responsável por preservar e divulgar o patrimônio material e imaterial do país. É ele que avalia o tombamento de conjuntos urbanos, edificações, museus e acervos, como o Museu Nacional e o Palácio Universitário, por exemplo, ambos pertencentes à UFRJ. No âmbito imaterial, 47 bens foram reconhecidos desde 2002. Entre eles, estão o frevo, o jongo no sudeste, a literatura de cordel, a roda de capoeira e o ofício dos mestres de capoeira.

O Iphan conta com 27 superintendências, uma para cada entidade federativa do país. Após o bem ser reconhecido como patrimônio cultural, inicia-se o processo de salvaguarda dele, que tem como principal objetivo garantir sua proteção e preservação por meio de documentações e investigações que permitam sua valorização. Cada superintendência tem a liberdade de implementar políticas diferentes para a manutenção desse patrimônio, relacionadas a recursos, mao de obra ou outros elementos. Isso faz com que as coisas aconteçam em tempos diferentes, de acordo com a realidade de cada estado.

Nessa etapa, é construído um plano de salvaguarda, que estabelecerá as necessidades específicas para que o bem cultural seja preservado em cada um desses territórios, levando em consideração os apontamentos dos detentores daquele patrimônio. Um dos pontos estabelecidos no processo de preservação da roda de capoeira e do ofício dos mestres de capoeira foi a criação dos Conselhos de Mestres, que reúnem os detentores desses saberes ancestrais a fim de definir a melhor maneira de preservá-los.

A roda de capoeira é Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e da Humanidade | Foto: Fábio Caffé – Coordcom/UFRJ

Apesar de todos os esforços, para Gesline Geovana, a principal questão é que, embora os mestres há séculos venham protegendo a capoeira e seus ensinamentos, com eles não é visto o mesmo cuidado. “A capoeira de fato foi salvaguardada desde sempre pelos mestres. No entanto, não garantimos ainda a salvaguarda deles. Então como podemos atuar nessa coletividade? Nessa briga que é uma briga pela vida também?”

Mestres de Capoeira, um ofício

A pergunta traz à tona temas em relação à sobrevivência dos mestres de capoeira, com destaque para a questão previdenciária. Apesar de terem um saber notório reconhecido, isso não se reflete em garantias, direitos e políticas públicas para a manutenção da dignidade do grupo.

O mestre é o verdadeiro detentor da prática da capoeira. É pela transmissão oral, pelo corpo e pela real vivência que ele passa seu conhecimento aos integrantes da roda. Ainda assim, no último ano, não foram poucas as “vaquinhas” realizadas com o intuito de arcar com funerais de colegas em situação de vulnerabilidade, conta o mestre Paulão Kikongo, que há anos também se debruça sobre o tema de patrimonialização como pesquisador. Ele defende que é necessário que haja um fomento por parte do estado brasileiro para a preservação desse bem cultural e para que os mestres possam sobreviver do próprio ofício, principalmente sendo ele reconhecido como patrimônio imaterial do país.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.640/2020, que dispõe sobre o reconhecimento do ofício do profissional de capoeira, submetendo-o ao regime CLT, um possível primeiro passo para que os mestres se sintam mais resguardados. No entanto, há controvérsias. Para o mestre Paulão, caso aprovado, o PL não significaria garantia de direitos por não estabelecer vínculo. “A gente precisa buscar o reconhecimento do notório saber dos mestres e pensar em algum vínculo que lá na frente facilite a questão previdenciária. Conheço alguns mestres de capoeira que se aposentaram, mas contribuíram a vida toda ao INSS.”

Uma das possibilidades levantadas por ele para aumentar o conhecimento das pessoas sobre a importância dos bens culturais é a inserção da educação patrimonial nas escolas, principalmente para transformar a visão de que apenas os bens materiais são valiosos e necessitam de manutenção. Nesse ponto, ele é acompanhado por Alanson Costela, contramestre e parceiro na mesa: “Quando o material é destruído, é o imaterial que permanece”, reforçou.

“Capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método, e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.”

Mestre Pastinha

Com séculos de existência, a capoeira mostra que isso é uma verdade. Um patrimônio imaterial difícil de definir, mas há quem tente e se aproxime. Para isso, é preciso viver, sentir na pele e ter ginga. Mestre Pastinha disse: “Capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método, e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”. Não tem fim e por isso segue resistindo. Por aqui, tentamos definir também: capoeira, resistência imaterial.