Camponeses enfrentam dificuldades para escoar a produção, mas podem evitar colapso do setor alimentar. Estado deve investir e sociedade precisa apoiar
Por Patrícia da Veiga
Em reportagem publicada aqui no site, contamos a história de trabalhadores vinculados à Feira Agroecológica da UFRJ que, desde o início da pandemia da COVID-19, enfrentam dificuldades para escoar o que produzem e, assim, manter as contas em dia. Como escrevemos na ocasião, não se trata de um caso isolado. O contexto de instabilidade tomou conta da vida camponesa.agricul
Quem chama atenção para o problema é Leile Teixeira, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ e integrante do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão Questão Agrária em Debate (Qade). “A não existência de algumas feiras e a diminuição do público em outros mercados que permaneceram funcionando fazem com que os produtos fiquem retidos no campo, podendo gerar uma redução na renda dessas famílias – que, por sua vez, já é muito baixa.”
O alerta também vem da sociedade civil. Angelita Nascimento, nutricionista e representante da União de Negros pela Igualdade (Unegro) no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Rio de Janeiro (Consea – RJ), apresenta elementos que, historicamente, estão na lista de empecilhos para o produtor. “Custos altos, falta de transporte, estradas destruídas, pedágio, isso tudo é caro. Existe dificuldade em comercializar os alimentos até mesmo no seu próprio entorno”.
A crise sanitária e socioeconômica provocada pelo novo coronavírus ficou ainda mais grave com a descontinuidade de políticas públicas, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). “Muitos agricultores estavam vendendo para as escolas. No entanto, as prefeituras não fizeram plano para as crianças receberem, por exemplo, um kit alimentação”, pontua a representante do Consea. Essa foi a recomendação do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), que confirmou o repasse de R$ 4 bilhões para o Programa.
“O governo estadual tem feito liberação de recursos para as famílias das crianças, para que comprem alimentos, mas esse recurso é muito pequeno, não chega a R$ 90,00. Ainda foi pensado de uma forma que estimula que a compra seja feita em supermercados. A gente precisa muito que a compra se volte aos camponeses”, explica a professora da UFRJ. De acordo com a Lei n° 11.947/2009, estados e municípios são responsáveis pela gestão dos recursos, empregando uma parcela de 30% na agricultura familiar local.
Sem apoio institucional
Em abril, 877 organizações, entidades sindicais e movimentos do campo e da cidade assinaram carta endereçada ao Governo Federal, com proposta de inserção de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o que garantiria a compra de 300 toneladas de produtos oriundos da agricultura familiar. A previsão orçamentária de 2020 para o Programa era de R$ 186 milhões. Com suplementação garantida por medida provisória, o orçamento final ficou em R$ 500 milhões – que ainda não foram liberados.
Criado em 2003, o PAA fortaleceu a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e, durante mais de uma década, foi ação estratégica para o combate à fome. “É um programa federal, mas pode ser reproduzido em municípios e estados, de compra direta das famílias. Essa aquisição é importante porque garante o escoamento da produção, garante que as famílias continuem tendo recursos para seguir produzindo e, ainda, que o Estado tenha reservas de alimentos, fazendo com que esses alimentos cheguem até as pessoas que não têm condições de pagar por eles”, assinala Leile Teixeira.
“O PAA precisa ser retomado com força e fôlego para que o Estado brasileiro tenha reserva de alimentos e possa atravessar qualquer outra crise que venha: de saúde, climática, alimentar, econômica”, defende a docente.
Os camponeses dependem também de acesso a crédito. O Plano Safra, em 2020, destinou R$ 263,3 bilhões para a agropecuária, reservando 12% ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). A decisão não agradou. “Tentamos pautar o Plano Safra, mas ele foi aprovado todo voltado para o agronegócio. Isso achatou ainda mais as famílias camponesas”, analisa Cristina Flores, da coordenação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Rio de Janeiro.
Restou a disputa por medidas emergenciais via Congresso Nacional. Tramita no Senado o Projeto de Lei n° 735/2020, que prevê abono para feirantes, agricultores familiares, pescadores, extrativistas, silvicultores e aquicultores. A proposta, caso aprovada e sancionada, garantirá auxílio de R$ 3 mil (cinco parcelas de R$ 600,00) para quem não acessou o pagamento via Lei n° 13.982/2020; fomento de até R$ 3 mil para famílias em situação de extrema pobreza que necessitem reorganizar sua produção; linha de crédito especial, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), para famílias com renda de até três salários mínimos.
Antes de chegar ao Senado, o projeto de lei passou pela Câmara dos Deputados, teve seu texto modificado, teve a votação adiada por três semanas e acabou aprovado depois da pressão dos movimentos sociais. “Muitas famílias já perderam parte ou a totalidade de sua produção e agora a gente tem, de novo, uma janela de plantio, que é esse período do segundo semestre. Ou seja, as famílias precisam acessar o crédito agora para poder reconstruir suas plantações e garantir a colheita do ano que vem”, reforça a representante do MPA.
Sem condições de colher e vender, o produtor pode não alcançar a próxima safra e, com isso, o alimento pode faltar no mercado ou chegar ao consumidor com preço final modificado. “Pode haver inflação nos preços de insumos básicos como arroz, feijão, leite, ovos”, acrescenta Cristina. Uma vez faltando alimentos no mercado interno, como já aconteceu em outros momentos da história do país, o governo teria de recorrer ao mercado externo. “Imagina a gente importar feijão, quando o governo poderia garantir que as famílias produzissem!”, exclama Cristina.
FAO também alerta
Os camponeses são responsáveis por 80% do que o mundo consome, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70% dos alimentos que vão para a mesa da população são oriundos da agricultura familiar. Essa produção vem de 3,9 milhões de estabelecimentos que, conforme aponta o Censo Agropecuário 2017, empregam mais de dez milhões de pessoas e são responsáveis por 23% do faturamento do setor agropecuário.
Em carta produzida no mês de junho, a FAO alertou os governos sobre um possível colapso no abastecimento. “A COVID-19 surgiu numa altura em que os nossos sistemas alimentares já estavam sob tensão devido a conflitos, desastres naturais, mudanças climáticas e ameaças sem precedentes de pragas”, diz o documento.
O cálculo feito pela FAO é de retração econômica global de US$ 8,5 trilhões, com 49 milhões de pessoas correndo o risco de retornar à extrema pobreza em todo o mundo. Por isso, de acordo com a carta, os governos devem estar atentos e “garantir que os pacotes de ajuda e de estímulo cheguem aos mais vulneráveis, respondendo às necessidades de liquidez dos pequenos produtores de alimentos e das empresas rurais”.
Insistência e criatividade
As mulheres representam 43% da força de trabalho da agricultura, em todo o mundo, aponta a FAO. Elas são também responsáveis pela sustentação de suas famílias e pela continuidade da produção. É o caso de Suênia Pereira da Silva, vinculada à Feira Agroecológica da UFRJ e residente na zona rural do município de Guapimirim, e de Mirian Firmino, do assentamento Terra Prometida, localizado em Duque de Caxias. A primeira aguarda a eventual aprovação do Projeto de Lei n° 725/2020, que tramita no Senado. A segunda conseguiu receber o auxílio via Lei n° 13.982. As duas relataram à nossa reportagem como têm vivido e como seguem na lida.
Suênia, com 36 anos, e o marido, com 40, têm evitado ao máximo sair de casa por já acumularem problemas de circulação e pressão, dois agravantes que os inserem no grupo de risco da COVID-19. Para completar, a agricultora levou um susto quando sua mãe foi infectada pelo novo coronavírus – hoje está recuperada e passa bem.
Conhecida em sua região como “Suênia da tapioca”, ela produz uma variedade de mandiocas, além de inhame, abóbora, maxixe, café, banana, mamão, tangerina, jabuticaba, laranja, graviola, hortaliças, cúrcuma, urucum, entre outras espécies. “Também crio meus porquinhos e minhas galinhas, soltos no terreiro, sem estresse”, complementa.
Antes da pandemia, a agricultora pegava três ônibus até o Rio de Janeiro, toda semana, para vender seus produtos. Depois, passou a contar com a doação direta feita pelo projeto de extensão Comunidade Acadêmica que Dá Suporte à Agricultura (Casa) e a comercializar o que vem colhendo e processando na porta de casa. “Faço minhas cocadas, meu marido me ajuda, faço minha goma de tapioca, minha farinha, polpas de frutas”, revela.
Certificada como produtora orgânica pela Associação dos Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (Abio), Suênia contribui para a fiscalização da produção ecológica de Guapimirim e reforça a importância de aliar seu trabalho com a preservação ambiental. “Aqui tem uma biodiversidade muito grande e nós respeitamos isso. Se um passarinho vem comer nossas frutas, nós deixamos, pois isso é sinal de que elas estão boas, sadias”, exemplifica. Sua situação financeira não é boa, mas ela insiste: “A gente tenta tirar tudo da terra”. Ainda que com dificuldades, o trabalho não parou.
Ao receber o auxílio emergencial, Mirian dividiu o dinheiro com os filhos e investiu em ferramentas para seu trabalho. “Como eu estava bem certinha com as minhas contas, comprei um moedor, uma moenda com motor e, com a última parcela, vou comprar um tratorito. Se faltar, complemento com o meu trabalho. Com esse maquinário posso moer carne, legumes, mandioca, cana, fazer melado, rapadura e aumentar a produção”, acrescentou.
Em seu terreno, atualmente, Mirian tem plantados feijão, milho e abóbora. Também conserva uma pequena horta. Para manter a qualidade do que cultiva, troca sementes com agricultores de outros assentamentos, evitando transgênicos. “A [semente da] abóbora eu trouxe lá de Minas Gerais, é uma abóbora gigante. O milho crioulo e o feijão vermelho vieram do Paraná e eu também peguei um pouco com o MPA”, explica. Seu tempo é dividido com o trabalho voluntário. Mirian participa regularmente dos mutirões promovidos pelo Centro de Ação Comunitária (Cedac), que organiza cestas básicas e marmitas e as distribui à população de comunidades da Região Metropolitana.
Rota alternativa
Enquanto o apoio por parte do Estado não vem, é preciso apostar na organização popular e na criação de rotas alternativas para a circulação dos alimentos. Um exemplo é o sistema de vendas de cestas pela internet que fideliza a clientela e tem crescido nas cidades. A UFRJ, por meio do Qade, acompanha via extensão universitária a Cesta Camponesa, que faz parte do Sistema de Abastecimento Alimentar Popular do MPA. “É uma forma de venda direta de alimentos da reforma agrária, oriundos das famílias camponesas do estado do Rio de Janeiro e de outros estados”, explica Leile Teixeira, professora da ESS.
Clientes interessados podem acessar o site e se cadastrar. Uma vez registrados, serão distribuídos por grupos, conforme os bairros da cidade, e poderão escolher os alimentos em duas chamadas semanais. A Associação dos Motoristas Autônomos de Táxi de Santa Teresa (Santáxi) faz as entregas e o pagamento é realizado por meio de transferência bancária.
Os alimentos fornecidos pela Cesta Camponesa também são cultivados de forma biológica, respeitando o meio ambiente e priorizando as sementes crioulas. Outra característica de sustentabilidade desse sistema são as doações a famílias que não têm condições de acessar os alimentos. “Essas cestas são entregues a famílias que estão em situação de desemprego, de empobrecimento, que não têm renda nem salário”, descreve Leile.
O Sistema de Abastecimento Alimentar Popular do MPA envolve 60 bairros da capital, 20 municípios do Rio de Janeiro, uma comunidade indígena, um quilombo, uma cooperativa de trabalhadores, três ocupações de moradia e 13 favelas. Um último balanço feito pelo grupo deu conta de 8.226 cestas distribuídas, 40 toneladas de alimentos escoados, mais de 35 toneladas de alimentos doados, 35 famílias agricultoras contempladas, 795 variedades de alimentos e produtos disponibilizados, mais de 5 mil pessoas alimentadas e 103 trabalhadores envolvidos na logística.
Sociedade deve apoiar
Se mais da metade do que as pessoas comem vem da agricultura familiar, o problema dos camponeses é também de quem está nas cidades. Além de acessar as políticas públicas, as famílias precisam do reconhecimento e do apoio da população. Leile, assim, manda um recado:
“Se nós não voltarmos imediatamente a atenção, a política, a economia e a compreensão para o que é a vida rural e para a importância de manter as pessoas no campo, não vamos conseguir fazer realmente um debate profundo sobre saúde”.
Fonte: www.ufrj.br