“Relatos de Combate” traz entrevistas com diferentes lideranças realizadas no podcast Rádio Cidadania
Por Disney Pereira e Vanessa Almeida – Fonte: www.ufrj.br
Distanciamento. Máscaras. Petições. O ano atípico de 2020 ficou marcado na história tanto pela crise sanitária, social e econômica causada pela pandemia de covid-19 quanto pelo assassinato brutal de George Floyd, nos Estados Unidos, e a onda de protestos antirracistas que reuniu multidões ao redor do mundo em busca de justiça durante um período de perdas e incertezas.
No mesmo ano, a Universidade da Cidadania (UC), órgão suplementar da UFRJ ligado ao Fórum Ciência e Cultura (FCC), criou o podcast Rádio Cidadania com o objetivo de dar visibilidade e estimular o diálogo entre o mundo universitário e os movimentos sociais. O programa, que está em sua terceira temporada, realiza entrevistas com ativistas e lideranças, oferecendo um olhar único sobre as lutas e os desafios enfrentados por diversos movimentos e organizações da sociedade civil.
Agora, as trinta entrevistas do primeiro ano do podcast estão reunidas no livro Relatos de combate: movimentos sociais na pandemia, lançado pela Editora UFRJ no dia 16/11. Organizada pela historiadora Dulce Pandolfi e o professor Paulo Fontes, a obra agrega desde movimentos com ramificações internacionais – como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) –, passando por entidades já consolidadas – como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) –, até coletivos com atuação em periferias ou movimentos menos convencionais, a exemplo do de pessoas em situação de rua.
Com entrevistas de Sueli Carneiro (Geledés), Guilherme Boulos (MTST) e Paulo Galo (Movimento Entregadores Antifascistas), a obra aborda temas como direitos humanos, saúde, uberização do trabalho, futebol e hip-hop, tecendo um registro histórico do papel, significado e importância dos movimentos sociais durante um momento importante para o mundo, especialmente a partir dos impactos no Brasil.
O Conexão UFRJ conversou com o professor Paulo Fontes, um dos organizadores do livro e diretor da Universidade da Cidadania (UC). Confira a entrevista completa a seguir:
Conexão UFRJ: Qual é o trabalho desenvolvido na Universidade da Cidadania?
Paulo Fontes: A Universidade da Cidadania da UFRJ tem como missão articular e apoiar as ações e o diálogo de saberes da universidade com os movimentos sociais em geral. A ideia é que a gente tenha na universidade um espaço que facilite o contato, a interlocução, o diálogo, o apoio mútuo, com movimentos sociais em particular. Estou na direção da UC desde o final de 2019 e, desde então, a gente tem movido ações com um duplo objetivo: abrir esse diálogo com os movimentos sociais sem nenhuma restrição a tipos ou orientações e fazer a Universidade da Cidadania ser mais conhecida dentro da UFRJ, que já faz uma série de atividades de ensino, pesquisa e extensão junto aos movimentos sociais por meio dos seus núcleos, departamentos e vários espaços. A gente já considera que o saber produzido pelos movimentos sociais também é muito relevante e pode ser potencializado em diálogo com a universidade. É bom para os movimentos sociais, para a universidade e para sociedade brasileira. Fizemos uma série de atividades de formação, mas eu gostaria de destacar duas: o curso de extensão “Movimentos Sociais no Brasil: história e desafios”, em que sempre colocamos um professor da universidade e alguém dos movimentos sociais para dar aula juntos, e o curso “Teorias e práticas para o enfrentamento de violações aos direitos humanos”, que nasceu logo depois do massacre do Jacarezinho. Então tivemos essa ideia de pensar em uma atividade para ativistas de favelas e comunidades do Rio de Janeiro. Esses cursos têm sido on-line e, a partir do ano que vem, a gente deve começar a fazê-los presencialmente.
Conexão UFRJ: Eu tinha preparado uma pergunta questionando se a aproximação entre a universidade e os movimentos sociais existia e era realmente efetiva. Parece que sim, né?
Paulo Fontes: Eu acho que a UFRJ tem uma tradição já longa de relações com movimentos sociais. Claro que a gente deve sempre aprimorar e avançar nessa relação, mas acho que temos que ter orgulho da nossa universidade porque ela, de fato, tem muitas relações que são pouco orgânicas – e é nesse sentido que a UC nasceu. São relações feitas a partir da nossa comunidade de professores, de docentes, de técnicos-administrativos e de estudantes. Feitas a partir do próprio trabalho que vários dos núcleos, departamentos e áreas da universidade fazem e atuam, né? Muita coisa na extensão, por exemplo… Se a gente for olhar as atividades que a PR-5 coordena, vai ter muita coisa de altíssimo nível e de bastante importância social. Mas, como eu disse, a nossa missão é tentar não só incrementar essa relação, não só torná-la ainda mais orgânica, mas coordenar melhor esse conjunto de atividades, tentar fazer com que isso se potencialize ainda mais. A gente viveu um momento – ainda vive – de muitos ataques à ciência, à tecnologia, à universidade e aos movimentos sociais, então não é à toa que esses setores foram alvos prioritários, eu diria, até de destruição de políticas públicas que eram articuladas com esses movimentos. Nesse contexto, cresceu mais a importância de um órgão como a UC dentro da UFRJ. Espero que, a partir do próximo ano, numa conjuntura melhor, de não ataques e de reconstruções de políticas públicas e de nação, a gente possa, enfim, dar um salto de qualidade ainda maior no trabalho que é realizado pela UFRJ em geral e particularmente pela Universidade da Cidadania.
Conexão UFRJ: Falando um pouco sobre o livro, como surgiu a ideia de compilar essas 30 entrevistas e como foi adaptá-las para a versão escrita?
Paulo Fontes: O livro compila a primeira temporada de entrevistas realizadas pelo podcast Rádio Cidadania. São 30 entrevistas que foram realizadas em 2020, no auge da pandemia, então o mote das conversas parte de uma frase que ficou famosa no período: deque os movimentos sociais e a universidade estavam enfrentando a pandemia e o pandemônio. O pandemônio querendo dizer em relação à conjuntura política que o país vivia naquela época. Então, a gente se deu conta de que tinha em mãos um material muito, muito rico, muito interessante. Você tinha entrevistas desde lideranças conhecidas dos movimentos sociais até organizações e lideranças menores e mais pontuais. A gente achou que ali havia uma diversidade e uma riqueza de experiências de posições, de divisões que precisavam ser registradas no papel. Isso poderia dar ainda mais visibilidade para aquilo e resultaria também em um registro histórico que poderia ser consultado mais facilmente. A gente sabe que os registros em vídeo e em áudio não concorrem com o registro no papel. As coisas podem, devem e estão convivendo de maneira proveitosa, auspiciosa, uma coisa retroalimentando a outra. Em conversas com nossos colegas da Editora UFRJ, apresentamos o projeto de publicar essas entrevistas, que têm a vantagem de serem curtinhas, então é uma leitura muito, muito agradável: as pessoas podem ler em qualquer ordem. A gente achou que era um material que poderia render um livro muito interessante, muito importante, e tocamos o projeto. A editora comprou a ideia e partimos para publicação. Acho que é um material do qual realmente a gente tem muito que se orgulhar. Estou muito feliz e orgulhoso com o resultado. Creio que a gente está cumprindo a nossa missão ao publicar esse livro.
Conexão UFRJ: É um material muito interessante mesmo. Como você disse, o podcast aconteceu durante a pandemia. Na sua opinião, houve alguma mudança na atuação dos movimentos sociais por conta do contexto de crise?
Paulo Fontes: Acho que sim. A pandemia colocou desafios para todos e para os movimentos sociais em particular. No livro, você tem relatos muito interessantes de formas de atuação, de ação, de criação de laços de solidariedade e de empatia ocorridos durante a pandemia. É um outro lado da moeda, pois a gente viu o governo federal numa atitude terrível, de pouca empatia, em alguns momentos inclusive de deboche da situação, de descumprimento da sua própria tarefa constitucional. Uma atitude criminosa em relação aos doentes, em relação à sociedade como um todo. É muito emocionante ver a ação que muitos movimentos sociais tiveram no sentido de criar laços de solidariedade e de pressionar por políticas públicas, mesmo nas circunstâncias tão adversas da quarentena, especialmente naqueles primeiros meses. É pouco falado, mas a ação dos movimentos sociais foi fundamental para pressionar os parlamentares para aprovação, por exemplo, do auxílio emergencial e de auxílios com valores até maiores do que eram propostos. Muitos desses movimentos são estigmatizados, criminalizados e colocados como se fossem párias, e, na verdade, ali está o melhor da nossa sociedade. É essa aliança de movimentos sociais e da sociedade civil organizada com a universidade que pode e vai ajudar a gente a reerguer e reconstruir este país nos próximos anos.
Conexão UFRJ: Durante a pandemia, os movimentos sociais acabaram substituindo o governo ao organizarem ações solidárias para grupos mais carentes. Na sua opinião, esse papel cabe aos coletivos?
Paulo Fontes: Bem, essa é uma pergunta complexa. Na verdade, acho que não cabe obviamente aos movimentos sociais substituir o governo, mas, em situações de ausência do poder público, de ausência de políticas públicas, é fundamental que a sociedade organizada aja, e acho que esse foi o caso durante a pandemia. Agora, também acho que a gente não pode esperar tudo do governo, né? O estado também é feito em articulação com redes e com a sociedade. A gente sabe disso porque em outros momentos já tivemos essa articulação sendo feita de uma maneira positiva. Claro, sempre de uma forma contraditória e tensa, porque a sociedade e vida social são tensas e contraditórias. Mas é importante, sim, que haja algum tipo de sincronia entre ações governamentais e ações de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais. Então, eu não vejo isso como um jogo de somar zero ou um, ou seja, uma coisa que seja totalmente excludente. A situação de 2020 foi absolutamente excepcional, porque nós vivemos um momento que ninguém havia vivido antes e que tem repercussões até hoje. A gente tem mais é que aplaudir e agradecer que os movimentos sociais agiram e não ficaram inertes. Eles souberam ao mesmo tempo ter uma ação direta, mas também cobrar e pressionar o governo, o parlamento e o mundo político a agirem.
Conexão UFRJ: Além do contexto da pandemia, tivemos uma consciência coletiva sobre a questão racial com o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e a ascensão dos protestos antirracistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Existe uma intersecção entre as questões de diferentes movimentos sociais?
Paulo Fontes: Essa sua pergunta é muito importante e me dá oportunidade de dizer que sim. Acho que 2020 foi um ano em que a questão racial apareceu no cenário público em primeiro plano. Ela mobilizou informações e lutas sociais efetivas no meio da pandemia numa dimensão global. A maioria dos nossos entrevistados – não apenas os negros e negras, mas também os brancos – chamou atenção pra essa questão. Acho que foi um assunto que entrou na pauta da maioria dos movimentos sociais para não mais sair. Há uma crescente consciência sobre a necessidade e a prioridade da luta antirracista como algo central aos movimentos sociais. Aqui no Brasil, a própria formação da Coalizão Negra por Direitos naquele contexto tem a ver com isso –uma espécie de “organização guarda-chuva” de várias ações do movimento negro, uma pauta muito forte nesse sentido. Mas mesmo organizações não especificamente do movimento negro apresentaram, de forma muito presente, uma pauta antirracista, uma pauta de direitos da população negra ou indígena. Eu lembro, por exemplo, da entrevista da Carmem Foro, uma mulher negra e secretária-geral da Central Única de Trabalhadores, mostrando essa intersecção entre as lutas sindicais, as lutas antirracistas e as lutas feministas. Eu diria que esse é um grande tema que atravessa o livro todo, porque atravessou os movimentos sociais naquele período e ainda nos atravessa.
Conexão UFRJ: Um dos maiores desafios enfrentados pelos coletivos mais juvenis é a dificuldade de aproximar de suas discussões nas redes sociais grupos menos letrados. A adequação da linguagem para esse público é suficiente para superar esse desafio?
Paulo Fontes: A gente tem várias gerações de movimentos sociais. Alguns têm mais recursos por conta de ONGs ou recursos públicos e outros são como redes e não funcionam de uma forma tão institucional e hierarquizada. Eles são múltiplos. A gente tem uma grande onda de movimentos no Brasil nos 1970 e 1980 e vários dos que a gente conhece hoje nasceram naquele período, como CUT, MST e o Movimento Negro Unificado. Então, você tem toda uma geração de iniciativas muito importantes que nasceram naquele período e, depois de julho de 2013, uma nova onda de coletivos especialmente engajados na discussão racial, de gênero e de direitos LGBTQIA+. Esses temas não nasceram agora, mas têm diferenças de ênfases, crenças políticas e visões que sempre existiram. E acho que apresentam diferenças de linguagens também. A internet é um divisor de águas na forma como os coletivos acessam o seu público nas redes sociais. Todos eles usam hoje a internet, mas talvez alguns usem uma linguagem mais impactante especialmente para as juventudes e outros menos. É importante dizer que foram muitos grupos mais à direita, até de extrema-direita, que dominaram essa linguagem, dominaram mais do que os progressistas. Agora, talvez, isso esteja mudando um pouco, mas ainda há uma hegemonia desses grupos mais conservadores. A linguagem é uma questão que agora diferencia menos. Como eu disse, a internet é um campo em que todos os movimentos sociais de alguma forma atuam. Acho que há diferenças de concepção sobre como eles devem atuar, sobre a relação com a institucionalidade, sobre como se dão as formas organizativas, as hierarquias e diferenças de concepções políticas, mas isso é uma qualidade que tem a ver com a pluralidade, mas também com as concepções e disputas políticas existentes – tudo isso é do jogo. O nosso livro reflete bastante sobre essas diferentes visões e espero que a gente continue podendo ver essa diversidade e, de alguma forma, reflita e avance a partir dela.
Dulce Pandolfi é historiadora e assessora da Universidade da Cidadania (UC) da UFRJ.
Paulo Fontes é bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor adjunto do Instituto de História (IH) da UFRJ e diretor da Universidade da Cidadania (UC) da UFRJ.
Saiba mais sobre o livro Relatos de Combate: movimentos sociais na pandemia no site da Editora UFRJ.