O Coletivo Trans Gisberta Salce, formado por estudantes da UFRJ, ajuda-nos a entender como o feminino se faz presente no movimento trans
Por Tassia Menezes – Fonte: www.ufrj.br
Mais um mês de março, mais uma chance para pautar as mulheres e o feminino. No entanto, uma proposta que supostamente seria de inclusão pode, muitas vezes, ser ainda mais excludente ao manter uma definição única do que é ser mulher ou performar feminilidade. Nessa trajetória, onde entra o movimento trans e suas diferentes formas de se identificar com o feminino? Essa pergunta não tem resposta fácil, mas, para começar a entender, é necessário escutar.
Dentro do movimento, o que se entende como trans é aquela pessoa que está fora da norma de padrão de gênero que foi designada a ela no seu nascimento. Alguém que, ao nascer, foi definido como homem e não se identifica dessa forma poderia se encaixar na definição de uma pessoa trans, mas não necessariamente precisa ser uma mulher trans. Uma coisa não implica outra, já que, quando se fala de identidade de gênero, existem diversas formas de uma pessoa se identificar.
As mais difundidas estão dentro da chamada binariedade, que abrange os rótulos de homem e mulher. Porém, existe a possibilidade de que uma pessoa se identifique com esses dois gêneros, sendo não binária, por exemplo, ou que não se identifique com gênero algum, definindo-se enquanto pessoa agênera. Essas variações podem ser infinitas e vale ressaltar que, para inserir as pessoas trans no movimento de luta pelas causas das mulheres, não basta incluir apenas as mulheres trans. É preciso ir além e pensar nas outras identidades, abarcando assim o grupo que seria chamado de trans femininas, do qual fazem parte não só as mulheres trans, mas também travestis e pessoas não binárias.
Quem olha de fora pode não perceber as diferenças, principalmente porque se trata sobretudo de uma questão de autoidentificação. No entanto, para quem sente na pele as próprias vivências é sobre ser quem se é. “Existe uma diferença entre performance e rótulo”, explica a estudante de Letras (Português/Francês) Brune Medeiros, integrante do Coletivo Trans Gisberta Salce. Enquanto a primeira se refere à forma com que a pessoa se expressa e, consequentemente, a maneira como os outros a veem, o segundo está relacionado a como ela se identifica.
Brune se identifica como travesti e com o feminino, mas não se vê como mulher. “Como uma travesti, eu abraço a minha feminilidade, sem abraçar uma mulheridade porque a mulheridade trans é imposta a nós por uma sociedade binária que só nos dá duas opções. Eu continuo uma travesti que desafia os rótulos e as normas de gênero. É por isso que eu enquadro travesti como uma identidade trans feminina, mas não binária, porque travesti não é mulher”, explica.
Em uma sociedade ainda tão dividida entre dualidades – certo x errado, branco x preto, homem x mulher –, vivenciar experiências flexíveis como a não binariedade pode ser muito desafiador e doloroso para essas pessoas. Sendo a universidade um microcosmos dessas vivências e, inclusive, dessas opressões, os estudantes trans da UFRJ decidiram se unir não só em busca de mais visibilidade para suas pautas, mas também como uma forma de buscar apoio mútuo. O coletivo se tornou um espaço para que eles soubessem que não estão sós.
Coletivo Trans Gisberta Salce
O Coletivo Trans Gisberta Salce surgiu no segundo semestre de 2019, no campus da Praia Vermelha, com o intuito de unificar as demandas dos estudantes trans da Universidade. Formado inicialmente por alguns alunos de Psicologia, Serviço Social e Pedagogia, hoje o grupo conta com 39 integrantes de diferentes cursos e identificações de gênero. Criado principalmente para reivindicar a aceitação do nome social na UFRJ, atualmente o coletivo tem expandido suas ações, buscando tanto ensinar os terceirizados sobre o movimento quanto garantir atendimento psicológico para estudantes trans.
O Coletivo teve seu nome escolhido em homenagem à transexual Gisberta Salce, uma imigrante brasileira que residiu durante anos em Portugal, onde foi assassinada por 14 adolescentes que a espancaram e estupraram durante dias apenas por ser quem era: uma mulher transexual, imigrante ilegal, prostituta, sem-teto e soropositiva. O homicídio de Gisberta gerou diversas mudanças na legislação do país, com novas leis que tinham como objetivo fazer com que a população trans tivesse mais acesso ao básico: saúde, educação, emprego e justiça. Um dos destaques foi, inclusive, a aprovação do asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição.
Apesar de o Brasil ser o país que mais mata transexuais no mundo, de acordo com dados da ONG Transgender Europe (TGEU), e crimes como o de Gisberta serem comumente noticiados por aqui, a evolução é pouca quando se trata da proteção da vida dessa população. Em 2020, 175 pessoas transexuais foram assassinadas no país, o que significa uma morte a cada dois dias. E o preconceito com essas vivências segue presente, dentro e fora da universidade.
População Trans na Universidade
Em entrevista ao Conexão UFRJ, conversamos com a estudante de Serviço Social Céu Monteiro. Ela também faz parte do Coletivo e relata experiências de assédio muito frequentes por parte de profissionais terceirizados, de colegas do corpo discente e também de docentes. Quando se trata do âmbito profissional, para ela, existe uma necessidade de a instituição investir na reeducação dessas pessoas e não focar em resoluções punitivistas, como demitir os profissionais responsáveis, por exemplo. “Vai colocar outra pessoa lá e o problema só vai acontecer várias vezes. A ideia é educar, é fazer essas pessoas entenderem que nós somos estudantes e que devemos ser respeitadas”, defende ela.
O mesmo caminho é apontado quando se trata de alunos e professores. Nesse caso, as principais reclamações seguem sendo em relação à falta de respeito quanto ao nome social escolhido pela pessoa trans e ao preconceito quanto ao uso do banheiro feminino por transfemininas. Para Brune, existe um grupo preconceituoso que não quer conhecer e não se importa com o tema. Ainda assim, ela acredita que é preciso expandir a quantidade de informação sobre a população trans, justamente para que os que têm interesse possam aprender e mudar suas visões. “A gente não pode julgar as pessoas que não sabem a diferença entre mulher trans, travesti e pessoas não binárias se elas não têm acesso a esse tipo de questão, não têm ninguém que está dentro desse meio que possa dar essa informação e explicar que não é a mesma coisa”, ressalta a estudante do oitavo período.
Por esses e outros motivos, em vez de esperarem por algum tipo de inclusão do movimento feminino/feminista, a proposta delas tem sido mais de auto-organização e busca pelo próprio espaço. Assim, o objetivo não é só serem ouvidas, mas também poderem falar e educar à sua própria maneira. Uma luta diária na busca por se sentirem pertencentes à universidade, à sociedade, à vida. “Queremos ser vistas, queremos ser vivas, queremos fazer pesquisa, estudar, especialmente dentro da universidade. Queremos ser universitárias”, conclui Céu.