No encerramento da série Vacinas, saiba por que a imunização não deve ser entendida apenas como ação individual, mas como um pacto coletivo
Por Carolina Correia e Igor Soares Ribeiro – Fonte: www.ufrj.br
Desde os primórdios da humanidade, vírus e bactérias são uma grande ameaça. Esses micro-organismos já dizimaram mais vidas do que grandes guerras e desastres naturais. Mas um gesto simples, fruto da dedicação de pesquisadores e do empenho de profissionais da saúde, pode proteger toda a comunidade por meio de um pacto social: a vacinação.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que a vacina contra o sarampo tenha evitado 21 milhões de mortes pela doença entre 2000 e 2017 no mundo. Graças aos imunizantes, doenças como a varíola foram erradicadas e a humanidade está quase livre da poliomielite.
Vacinar-se não é apenas uma ação individual, mas uma iniciativa de saúde pública. Inicialmente, ela promove a imunização direta, induzindo nosso corpo a produzir uma resposta imune – conforme já explicado na segunda parte desta série. Na COVID-19, essa medida é importante principalmente para proteger as pessoas dos grupos de risco, pois evita que a doença se agrave e leve ao óbito.
Mas, além disso, a vacinação também promove a imunização indireta, responsável por proteger a coletividade. O Sars-CoV-2, assim como vários outros agentes infecciosos, é altamente transmissível. Quando há mais indivíduos vacinados, a tendência é de que o vírus circule menos, fazendo com que um número menor pessoas seja capaz de transmiti-lo – já que muitos indivíduos estariam imunes.
“A vacinação não permitirá apenas uma queda no número de mortes, mas também uma diminuição significativa nas internações, desafogando os hospitais para que possam atender melhor tanto os casos de COVID-19 como de todas as outras enfermidades”, explica Guilherme Werneck, epidemiologista e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc).
Vacinar a si para proteger os outros
Vacinar-se é também proteger quem ainda não tomou a vacina, quem tomou mas não conseguiu obter a proteção ideal e, principalmente, quem não pôde tomá-la. Em geral, são poucas as situações em que as pessoas não devem ser vacinadas, mas há casos específicos em que protocolos precisam ser avaliados – seja por falta de estudos direcionados ou por questões de saúde que se mostrem impeditivas.
Crianças e adolescentes, por exemplo, ainda não foram testados durante as pesquisas. Como alguns dados já demonstraram que a faixa é pouco atingida pela doença, a recomendação é aguardar informações sobre testes específicos para esse grupo. Tanto a Pfizer quanto a AstraZeneca já iniciaram estudos com crianças e adolescentes e em breve devem divulgar seus resultados.
“As gestantes, por sua vez, devem ser avaliadas caso a caso. Embora não tenham sido testadas diretamente, os testes realizados na fase pré-clínica não mostram nenhum potencial para causar alterações na criança. As gestantes – vale lembrar – são um grupo de risco para desenvolver formas graves da COVID-19. Portanto, é necessário ponderar cada caso individualmente, sempre sob orientação do médico que acompanha e conhece essa gestante, para que seja possível confrontar o risco e o benefício de se tomar a vacina”, alerta.
Outro grupo que inspira mais atenção são os alérgicos. Werneck afirma que pessoas com histórico grave – anafilaxia – de alergia a alimentos, medicações ou outras vacinas devem, sim, se imunizar, mas precisam comunicar sua condição ao profissional de saúde e ser observados por um período de 30 minutos depois da aplicação. O único caso no qual a vacinação é terminantemente proibida é de alergia grave a componentes específicos da vacina, a exemplo do hidróxido de alumínio, na Coronavac, e do edetato dissódico di-hidratado (EDTA), na Covishield, da AstraZeneca. Segundo Werneck, esses casos são raros, mas podem acontecer. Como cada vacina apresenta componentes diferentes, as fórmulas devem ser avaliadas para que o paciente possa ser instruído sobre a segurança de utilizar um dos imunizantes em seu caso específico. A relação com os excipientes de cada vacina pode ser consultada aqui (Coronavac) e aqui (Covishield).
Por fim, o professor do Iesc explica que outros cuidados devem ser observados antes da vacinação. Em caso de febre ou outras enfermidades agudas, a imunização deve ser adiada. Nessas hipóteses, o médico deve ser contactado para avaliação de qual seria o melhor momento para se tomar a vacina.
A melhor vacina é a que está disponível
Segundo Werneck, as variações de eficácia das vacinas contra a COVID-19 precisam ser bem contextualizadas, uma vez que os estudos para cada um desses imunizantes utilizam uma série de metodologias e caracterizações de infecções e doenças muito diferentes – não há, muitas vezes, uma comparação direta, inclusive porque as populações envolvidas são diferentes.
“Nem sempre comparações diretas são apropriadas. É possível que parte dessas diferenças que foram identificadas inicialmente tenha a ver com caracterizações do desfecho clínico. Ou seja: a vacina protege contra a infecção? Protege contra a doença sintomática? Protege contra a doença grave? E contra a morte? As proteções, como podemos ver, são bastante variadas”, explica.
Todas as vacinas aprovadas pelos órgãos reguladores mostraram-se bastante imunogênicas e revelaram, na fase 3 de testes, eficácias variadas – a primeira matéria desta série, inclusive, explica como é o processo de desenvolvimento e testagem de vacinas. De acordo com o epidemiologista, todos os imunizantes apresentaram respostas muito razoáveis para os casos que necessitem de assistência médica, sobretudo as formas mais graves da doença – e, do ponto de vista da saúde coletiva, esse dado pode ser tão relevante quanto a própria eficácia global.
“Eficácia de uma vacina é a estimativa de sua capacidade de oferecer proteção. Então, quando a gente fala que uma vacina tem a eficácia de 70% para prevenir, digamos, formas mais graves da COVID-19, queremos dizer que, em comparação a não tomar vacina, tomá-la reduz a chance de o indivíduo desenvolver uma forma grave em 70%, que é uma redução bastante substantiva”, esclarece.
Werneck revela ainda que a melhor vacina no momento é a que está disponível. “Eventualmente, precisaremos de todas elas para que seja possível vacinar a maior quantidade de pessoas no menor tempo possível”, conta.
Como atingir a imunidade coletiva?
Apesar da grande discussão sobre a eficácia das vacinas que serão disponibilizadas, há outro conceito que pesa ainda mais no combate à pandemia: a cobertura vacinal – ou seja, o percentual da população que foi efetivamente vacinado.
Werneck destaca que, quanto mais alta for a cobertura vacinal, haverá menos pessoas suscetíveis, dificultando a proliferação do vírus. Isso faz com que o número de óbitos e casos caia mais rapidamente.
“Para uma vacina de 70% de eficácia, que é com o que estamos trabalhando, o ideal é que consigamos vacinar um percentual bastante alto dessa população, mais de 95%”, explica, levando em consideração a eficácia média das principais vacinas disponibilizadas no Brasil.
No início da pandemia, muito se falou – e ainda se fala – sobre imunidade de rebanho. Esse conceito caracteriza uma proteção coletiva por meio da imunização de grande parte da população e pode ocorrer de duas formas: a partir de vacinas ou naturalmente. No entanto, uma imunidade coletiva sem a utilização de vacinas se mostrou impraticável. O resultado do alto contágio acarretou um cenário catastrófico, como foi possível acompanhar recentemente em Manaus. Além do alto número de óbitos e do colapso no sistema de saúde, esse cenário estimula mutações no vírus, que produziram cepas mais transmissíveis (linhagem P.1) que podem, no futuro, ser até mesmo resistentes à vacinação. A ineficácia dos governos em manter políticas de isolamento e outras medidas de distanciamento também permitiu que mais de 260 mil pessoas morressem de COVID-19 apenas no Brasil – o equivalente a 10% dos óbitos pela doença em todo o mundo.
Até a publicação desta matéria, em 4/3, foram vacinados pouco mais de 275 milhões de pessoas ao redor do globo, o que equivale a apenas cerca de 3,54% da população. Nesse ritmo, de acordo com a OMS, mesmo com as vacinas, o mundo não alcançará a imunidade de rebanho em 2021.
Até lá, o docente reitera que os cuidados de proteção individual devem continuar sendo respeitados: usar máscara, higienizar as mãos e manter o distanciamento social. Não há tratamento precoce para COVID-19.
Valorize o SUS!
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública e gratuita do mundo e demonstra diariamente – e sobretudo em meio à pandemia de COVID-19 – o quão necessário é para o país. O Zé Gotinha, mascote do Programa Nacional de Imunizações (PNI), é conhecido por crianças e adultos que cresceram livres de doenças como a varíola, a poliomielite e o sarampo por conta de uma política pública de saúde extremamente efetiva.
Segundo Werneck, o programa tem a expertise validada com grandes campanhas vacinais, com salas preparadas, cadeia de frio – equipamentos de refrigeração para manter as vacinas em condições adequadas –, profissionais capacitados e divulgação massiva pelos meios de comunicação. Toda essa estrutura permite que, desde o nascimento, o brasileiro tenha acesso, sem custos, às vacinas mais importantes nos postos de saúde, protegendo toda a população de doenças graves. Atualmente, o programa oferece 44 imunobiológicos, entre vacinas, soros e imunoglobulinas.
Apesar de uma trajetória consolidada de quase meio século do PNI, o país ainda enfrenta uma grande infodemia, com a divulgação de fake news e a ação de grupos antivacina, que buscam deslegitimar todo o esforço dos pesquisadores e afastar as pessoas da única proteção que têm hoje contra a infecção. Entre diversos fatores, isso contribui para a queda da cobertura vacinal de outras enfermidades, a exemplo do sarampo, permitindo que a doença volte a preocupar as autoridades.
Reconhecer a importância de um sistema de saúde público e universal é, também, lutar contra a pandemia e a desinformação. Viva o SUS! Viva as vacinas! Viva a ciência!
“Acreditem nas vacinas! Elas são seguras, com boa efetividade para proteger formas graves da doença. Passaram por critérios clínico-epidemiológicos de avaliação e boas práticas de produção. Independentemente da eficácia, são um instrumento fundamental no combate à pandemia neste momento!”
— Guilherme Werneck, epidemiologista e professor da UFRJ
Série Vacinas
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