Para evitar evasão na carreira, representantes da categoria formulam Plano Emergencial Anísio Teixeira
Por Patrícia Veiga
Pesquisadores em formação querem melhores condições de trabalho e estudo para seguir na carreira acadêmica e consideram que o investimento no futuro da Ciência brasileira deve ser parte da retomada do crescimento do país. Pensando nisso, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) lançou, no fim de agosto, o Plano Emergencial Anísio Teixeira, com propostas e reivindicações direcionadas, sobretudo, ao Congresso Nacional.
A categoria quer auxílio emergencial para todos os pós-graduandos enquanto durar a pandemia da COVID-19; 150 mil novas bolsas de mestrado e doutorado; 50 mil bolsas de pós-doutorado; reajuste nos valores atualmente pagos; ampliação e flexibilização de prazos, entre outras medidas. E argumenta que o Estado brasileiro tem condições de arcar com esses custos, caso tome medidas como o descontingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico (previsto no Projeto de Lei Complementar n° 135/2020) e a aplicação de 25% do Fundo Social do Pré-Sal para Ciência e Tecnologia (como consta no Projeto de Lei n° 5876/2016).
Boa parte do que requer o Plano Emergencial Anísio Teixeira está na pauta do Legislativo, na forma de projetos de lei que tramitam entre a Câmara dos Deputados e o Senado. O que os pós-graduandos querem, então, é fazer o tema vir a público e estimular o encaminhamento. “O Congresso tem sido um espaço de resistência, um lugar que a gente tem revertido medidas regressivas do governo. Então temos de apostar na mobilização. É um espaço que ainda é suscetível à pressão popular”, defende Flávia Calé, presidenta da ANPG e mestranda em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP).
A entidade também quer discutir o plano com a sociedade. Por isso, tem conversado sobre o assunto em reuniões públicas (realizadas virtualmente) e está recolhendo assinaturas em uma petição on-line. Também busca apoio com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Sem trabalho e sem perspectiva
O desemprego e a redução de renda da população brasileira, somados ao desinvestimento em políticas públicas e aos cortes orçamentários impostos pelo atual regime fiscal, têm deixado os jovens cientistas sem perspectivas. “A participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) é a menor desde os anos 1950 e esse setor, que poderia empregar a maior parte da força de trabalho qualificada e voltada à inovação e pesquisa, hoje não tem essa capacidade de investimento. Os serviços públicos, por sua vez, estancaram a contratação em universidades e institutos de pesquisa. E este ano, em meio à pandemia, o Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) foi desestruturado”, exemplifica a presidenta da entidade.
O PNPD, mencionado por Calé, foi criado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em 2008 para dar continuidade a projetos de investigação. Em 2019 sofreu cortes e, em julho deste ano, foi suspenso, sem previsão de retomada. Tal desarticulação provoca impacto na trajetória de profissionais qualificados que levaram, no mínimo, seis anos para se formar. Sem apoio do Estado e sem oportunidades no mercado, esse grupo corre o risco de abandonar a carreira ou buscar vagas em outros países, concretizando a chamada “fuga de cérebros”. Uma tragédia que pode ser individual, mas que também é coletiva.
De acordo com a Capes, 90% das pesquisas brasileiras estão nos Programas de Pós-Graduação e 80% delas são realizadas em instituições públicas. Ou seja, a perda é também para os Programas, para as instituições e, consequentemente, para o país. “A Ciência no Brasil ainda é vista como gasto e não como investimento. As bolsas que nós recebemos não podem ser olhadas como benefício individual, mas como parte de um projeto de desenvolvimento científico, tecnológico e social”, defende Gustavo Taveira, secretário-geral da Associação de Pós-Graduandos (APG) da UFRJ e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Química Biológica.
Remuneração
No universo de 320 mil pessoas matriculadas em cursos de mestrado e doutorado, menos da metade recebe para realizar seu trabalho. Somente nos últimos dois anos, mais de 20 mil bolsas de pesquisa foram cortadas. Cortes estes que vêm ocorrendo, pelo menos, desde 2015 e, com a apresentação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) para 2021, a previsão é de ainda mais restrições.
Quem consegue ser remunerado pelo estudo que desenvolve lida com valores há sete anos sem reajuste. Uma correção com base na inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), hoje, ajustaria as bolsas de R$ 1,5 mil para R$ 2,16 mil no mestrado e de R$ 2,2 mil para R$ 3,17 mil no doutorado. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que tem orçamento próprio garantido por lei, já paga remuneração aproximada aos pós-graduandos vinculados a instituições paulistas.
Apesar das dificuldades, os pesquisadores em formação não costumam ser poupados. Pesquisas apontam o quanto a categoria sofre com estresse, ansiedade e depressão. “É imprescindível falar que somos nós, com nossos estudos, publicações e ações, que desenvolvemos a maior parte da pesquisa no país. Estamos em um limbo entre estudantes e trabalhadores, o que nos faz perder direitos de ambas as categorias”, defende Taveira.
Pandemia
No contexto da COVID-19, muitos pós-graduandos tiveram de se afastar do ambiente de trabalho, perderam o acesso regular às bases de dados, enfrentaram dificuldades para assistir às aulas remotas e não puderam cumprir as metas estabelecidas pelas agências de fomento – que balizam as diretrizes dos Programas de Pós-Graduação. Sem contar a sobrecarga de trabalho e a inevitável redução da produtividade, provocadas pela dupla – às vezes tripla – jornada, envolvendo o trabalho remoto, a casa, os filhos (pesquisa realizada pelo grupo Parent in Science constatou efeitos de gênero, raça e parentalidade na produção acadêmica realizada durante a pandemia).
“Com isso, organizamos e enviamos um abaixo-assinado com mais de 6,6 mil assinaturas para a Capes, pressionando pela prorrogação das bolsas de estudo de todos os pós-graduandos, com sobreposição de cotas.” Tanto a Capes quanto o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) estenderam os prazos de avaliação e entrega de relatórios, mas, segundo Taveira, respondem “com morosidade” sobre a prorrogação das bolsas em vigência. “O contexto da pandemia é, sem dúvidas, o mais complexo possível”, define o secretário-geral da APG da UFRJ.
Na Universidade, onde os prazos de defesa estão suspensos desde março, a APG distribuiu questionários para conhecer a realidade dos estudantes e organizou uma campanha de apoio. “Detectamos muitos discentes em condições precárias, visto que muitos deles não recebem bolsas e, os que recebem, estão usando a bolsa para o sustento da família, em que não raramente há pessoas que perderam seus empregos”, relata Taveira.
Outra leitura
O Plano Emergencial Anísio Teixeira não é consenso entre os pós-graduandos. Para Lilian Barbosa, assistente social e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS), a principal discordância está na base do projeto: “Não há consenso em relação à análise de conjuntura feita pela ANPG”. Isso, segundo ela, incide sobre o modo como a entidade define suas táticas e estratégias. “Acredito na articulação dos pós-graduandos, mas isso deve se dar pelas bases e não somente de forma vertical, com a burocratização das organizações estudantis”, avalia.
Para a pesquisadora, falta a categoria aprofundar um debate sobre ações afirmativas e políticas de assistência. “Não vi nada no Plano em relação a isso. Precisamos lutar, principalmente, pensando em quem não recebe bolsa e não tem outra fonte de renda. A demanda emergencial é para ontem, mas poderíamos ter uma política semelhante ao Pnaes [Programa Nacional de Assistência Estudantil – voltado para a graduação]. As condições de pesquisas de alguns segmentos da ciência são precários”, discute.
Para enfrentar as questões de gênero, raça e classe na Ciência, o Plano reivindica editais especiais para os grupos atingidos pela COVID-19 (a exemplo das mulheres negras, de acordo com as pesquisas realizadas no período, as mais afetadas pelo trabalho remoto) e avaliação diferenciada para pessoas com filhos, seja no currículo lattes, seja em futuros concursos e possibilidades de fomento. Na leitura de Barbosa, no entanto, são medidas tímidas.
“Existe uma divisão racial e sexual do trabalho que reflete na produção acadêmica. Devemos criar mecanismos pensando em médio e longo prazo para essa situação, para além do contexto pandêmico”, observa. “Precisamos de condições para trabalhar, manter o isolamento social, políticas de acesso e permanência, políticas para pais e mães. Não ao produtivismo, ao trabalho em prol do lucro, ao ensino remoto. As vidas importam”, defende.
Anísio Teixeira
O Plano Emergencial da ANPG recebeu o nome de Anísio Teixeira, educador e um dos fundadores do movimento Escola Nova, pela educação pública, laica e gratuita. Viveu entre 1900 e 1971, defendendo a formação integral como base para a democracia e o desenvolvimento do país.
“O Anísio é um intelectual, um pensador da educação no Brasil, que tem uma visão da educação com sentido estratégico de formação da nação. Ele é um símbolo do que significa esse plano emergencial porque a sociedade só pode abraçá-lo se compreender que essas medidas emergenciais dizem respeito a um setor que olha para o futuro do país, para a reconstrução do Brasil”, apresenta Flávia Calé.
Fonte: www.ufrj.br